O Referencial de Frenet-Serret e Grupos de Lie
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O Referencial de Frenet-Serret e Grupos de Lie
O Referencial de Frenet-Serret e Grupos de Lie Conrado Damato de Lacerda Universidade Estadual de Campinas O referencial de Frenet-Serret é um tema clássico de Geometria Diferencial e consiste de atribuir a cada ponto de uma curva espacial uma base ortonormal positiva de R3 que forneça propriedades geométricas da curva. É interessante observar que essa atribuição essencialmente produz uma curva no grupo de Lie SO(3), e com isso podemos aproveitar a bem conhecida estrutura desse grupo para obter informações sobre a curva original. Nas próximas páginas descreveremos como isso pode ser feito. O Referencial de Frenet-Serret Seja γ : [0, L] → R3 uma curva de classe C k , k ≥ 3, parametrizada por comprimento de arco (PPCA), isto é, |γ̇(s)| = 1 para todo s ∈ [0, L], em que | | denota a norma euclideana usual de R3 . Definimos o vetor tangente a γ como sendo a função T : s ∈ [0, L] 7→ γ̇(s) ∈ R3 . Dois fatos acerca de T são relevantes: Z • T e γ(0) determinam γ; de fato, γ(s) = γ(0) + s T (t)dt. 0 • Ṫ ⊥ T , pois hṪ , T i = unitário. 1 d 1 d |T (s)|2 = 1 = 0. Não é necessário que Ṫ também seja 2 ds 2 ds Definimos a curvatura de γ como sendo a função κ : s ∈ [0, L] 7→ |Ṫ (s)| ∈ [0, +∞). Suporemos, por motivos geométricos, que κ > 0. Com isso, definimos o vetor normal a γ como a função N : s ∈ [0, L] 7→ Ṫ (s)/κ(s) ∈ R3 . Segue dessas definições que N é um campo unitário ao longo de γ perpendicular a T e vale a relação Ṫ = κN . O vetor binormal a γ é dado por B(s) := T (s) × N (s), em que × denota o produto vetorial de R3 . Deste modo, (T (s), N (s), B(s)) é uma base ortonormal positiva de R3 para cada s ∈ [0, L]. Chamamos a tripla (T, N, B) de referencial de Frenet-Serret de γ. 1 As equações de Frenet-Serret São as equações que descrevem Ṫ , Ṅ e Ḃ em termos do próprio referencial de Frenet-Serret. A primeira já foi obtida: Ṫ = κN . Para a segunda, que descreve Ṅ , primeiro notamos que |N | = 1 implica, como no caso de T , que Ṅ ⊥ N . Logo, Ṅ = αT +τ B, em que α, τ : [0, L] → R. Chamamos τ de torção de γ, e provaremos a seguir que α = −κ. Com efeito, de Ṫ ⊥ T temos (1) 0= d hṪ (s), T (s)i = hT̈ (s), T (s)i + |Ṫ (s)|2 . ds Derivando ambos o lados da equação Ṫ = κN , obtemos T̈ = κ̇N + κṄ . Substituir essas duas relações em (1) fornece 0 = hκ̇N + κṄ , T i + |κN |2 = κ(hṄ , T i + κ), e portanto α = hṄ , T i = −κ. A segunda equação de Frenet-Serret então fica Ṅ = −κT + τ B. A terceira equação, que determina Ḃ, é obtida das duas primeiras mais a definição de B: como B = T × N , então Ḃ = Ṫ × N + T × Ṅ = (κN ) × N + T × (−κT + τ B) = −τ (B × T ) = −τ N. Com isso obtemos as equações de Frenet-Serret: Ṫ = κN (2) Ṅ = −κT + τ B Ḃ = −τ N. O Grupo SO(3) Definimos SO(3) como o conjunto das matrizes A ∈ M3 (R) que satisfazem At A = I (ou, equivalentemente, AAt = I) e det(A) = 1. A primeira condição significa que as matrizes de 2 SO(3) são ortogonais, e portanto são as matrizes de mudança entre as bases ortonormais de R3 . Já a segunda implica que essas mudanças de base não alteram orientação, de modo que SO(3) pode ser visto como o conjunto das matrizes de mudança entre bases ortonormais positivas. Se γ : [0, L] → R3 é uma curva PPCA e (T, N, B) é o seu referencial de Frenet-Serret, definimos a curva F : [0, L] → SO(3) pela condição que F (s) é a matriz de mudança da base canônica de R3 para (T (s), N (s), B(s)), isto é, | | | . F = T N B | | | Usaremos o termo referencial de Frene-Serret para também nos referirmos à curva F . Teorema 1. Seja so(3) o subespaço vetorial de M3 (R) formado pelas matrizes antissimétricas. 1. Seja F : [0, L] → SO(3) uma curva. Então existe uma curva ω : [0, L] → so(3) tal que Ḟ = F ω. 2. Dadas ω : [0, L] → so(3) e A0 ∈ SO(3), existe uma única curva F : [0, L] → SO(3) tal que F (0) = A0 e Ḟ = F ω. 1. Defina ω : [0, L] → M3 (R) por ω(s) = F (s)t Ḟ (s). Segue de F F t = I Demonstração. que Ḟ = F ω, de modo que resta apenas provar que ω(s) é antissimétrica. Para tanto, usamos que F t F = I: 0= d d I = F (s)t F (s) = Ḟ (s)t F (s) + F (s)t Ḟ (s) = ω(s)t + ω(s). ds ds 2. A equação Ḟ = F ω é uma EDO linear (com coeficientes não constantes), e portanto existe uma única curva F : [0, L] → M3 (R) que a satisfaz e tal que F (0) = A0 . Só falta provar que F (s) ∈ SO(3) para todo s ∈ [0, L]. Consideremos a curva G : s ∈ [0, L] → M3 (R) dada por G(s) = F (s)F (s)t . Por um lado, d F (s)F (s)t = Ḟ (s)F (s)t + F (s)Ḟ (s)t ds = F (s)ω(s)F (s)t + F (s)ω(s)t F (s)t Ġ(s) = = F (s)(ω(s) + ω(s)t )F (s)t = 0, 3 isto é, G é constante. Por outro, G(0) = A0 At0 = I pois A0 ∈ SO(3), e portanto F F t = I. Por fim, det F (s) = ±1 uma vez que F (s) é uma matriz ortogonal e o sinal de det F (s) é o mesmo de det F (0) = det A0 = 1 por continuidade. Com isso, det F (s) = 1 e F : [0, L] → SO(3). Tomando F o referencial de Frenet-Serret de γ, escrevamos ω explicitamente 0 −a −b , em que a, b, c : [0, L] → R. ω= a 0 −c b c 0 Pela parte 1. do Teorema 1, | | | 0 −a −b | | | | | | Ṫ Ṅ Ḃ = T N B · a 0 −c = aN + bB −aT + cB −bT − cN , | | | b c 0 | | | | | | isto é, Ṫ = aN + bB Ṅ = −aT + cB Ḃ = −bT − cN. Comparando com as equações de Frenet-Serret (2), obtemos que a = κ, b = 0 e c = τ , de modo que (3) 0 −κ ω= κ 0 0 τ 0 −τ . 0 Teorema 2 (Teorema Fundamental de Curvas). Sejam κ, τ : [0, L] → R, κ > 0. Então, existe γ : [0, L] → R3 uma curva PPCA com curvatura κ e torção τ . Além disso, se γ̃ é outra tal curva, então existe um movimento rı́gido R : R3 → R3 , tal que γ̃ = R ◦ γ. Demonstração. Seja ω : [0, L] → so(3) dada por (3) e seja F : [0, L] → SO(3) a curva que satisfaz Ḟ = F ω e F (0) = I (parte 2. do Teorema 1). Para cada s ∈ [0, L] seja α(s) = (T (s), N (s), B(s)) a base de R3 tal que [I]can α(s) = F (s); é imediato que α(s) é base ortonormal Rs positiva de R3 . Defina γ : [0, L] → R3 por γ(s) = 0 T (t)dt. Claramente, γ̇ = T , de modo que γ é PPCA. A igualdade Ḟ = F ω implica Ṫ = κN , e disso segue que κ é a curvatura de γ. Já 4 B = T × N decorre de α(s) ser base ortonormal positiva de R3 , e portanto Ṅ = −κT + τ B (por Ḟ = F ω) implica que τ é a torção de γ. Isso mostra a primeira parte do Teorema. Seja (T̃ , Ñ , B̃) o referencial de Frenet-Serret de γ̃ com F̃ : [0, L] → SO(3) a curva associada. Mantemos as notações do parágrafo anterior. Como a curvatura e a torção de γ e γ̃ são iguais, então ambas F e F̃ são soluções de Ġ = Gω, diferindo apenas nas condições iniciais. A curva G = F̃ (0)F satisfaz Ġ = Gω e G(0) = F̃ (0), e portanto F̃ = G = F̃ (0)F . Seja R0 : R3 → R3 a tranformação linear cuja matriz com respeito à base canônica é F̃ (0), isto é, R0 (e1 ) = T̃ , R0 (ee ) = Ñ e R0 (e3 ) = B̃. Então, F̃ = F̃ (0)F implica que T̃ = R0 ◦ T , Ñ = R0 ◦ N e B̃ = R0 ◦ B. Por fim, defina R : R3 → R3 por R(v) = R0 (v) + γ̃(0). Claramente, R é um movimento rı́gido. Além disso, (R ◦ γ)(0) = R(0) = γ̃(0) e d d (R ◦ γ)(s) = [R0 (γ(s)) + γ̃(0)] = R0 (T (s)) = T̃ (s). ds ds Rs Portanto, (R ◦ γ)(s) = γ̃(0) + 0 T̃ (t)dt = γ̃(s). Ao construir γ a partir da sua curvatura e torção, a etapa mais complicada é resolver a equação diferencial Ḟ = F ω. No entanto, caso ω seja constante, então F (s) = F (0) exp(sω), em que exp é a exponencial de matrizes, e o cálculo explı́cito pode ser feito usando a forma de Jordan de ω (cf. [2]). O ponto-chave no que fizemos acima é o Teorema 1, que descreve as curvas em SO(3) (um grupo de Lie) em termos de curvas em so(3) (a álgebra de Lie de SO(3)). Essa é uma técnica poderosa sempre que se tenta estudar um problema geométrico através de simetrias ou referenciais, e é um dos principais temas da Teoria de Lie. Referências [1] Carmo, M.P. (2005) Geometria Diferencial de Curvas e Superfı́cies. Coleção Textos Universitários, SBM. [2] Rossmann, W. (2002) Lie Groups — An Introduction Through Linear Groups. Oxford University Press. 5