DIALOGISMO E POLIFONIA NO TEXTO DE PROPAGANDA

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DIALOGISMO E POLIFONIA NO TEXTO DE PROPAGANDA
DIALOGISMO E POLIFONIA NO TEXTO DE PROPAGANDA
Rúbia Carolina Martins VALENZUELA (UEM)
Maria Angela de Sousa BOER (UEM)
ISBN: 978-85-99680-05-6
REFERÊNCIA:
VALENZUELA, Rúbia Carolina Martins; BOER,
Maria Angela de Sousa. Dialogismo e polifonia no
texto de propaganda. In: CELLI – COLÓQUIO DE
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3,
2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 20292039.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este texto objetiva identificar e analisar os diferentes efeitos de sentido
produzidos pelo texto de propaganda do doce Fruittella (em anexo), veiculado pela
revista Caras em 25 de novembro de 2005. O dispositivo teórico-analítico foi construído
com base nos conceitos de dialogismo, polifonia e, mais especificamente,
intertextualidade e de interdiscursividade (MIKHAIL BAKHTIN, apud FIORIN,
2003). Em termos mais precisos, a análise investiga como o texto de propaganda da
Fruittella toma posse de conhecimentos já ditos, constitutivos de formações discursivas
diferentes do seu contexto socio-histórico e os “enquadra” no seu contexto enunciativo.
Devido ao avanço tecnológico dos meios de comunicação de massa, no universo
midiático da propaganda, há um desafio constante quanto à inovação, à criatividade, à
qualidade, e, por conseguinte, à conquista do público consumidor. Para isso, a mídia
utiliza-se, além dos recursos tecnológicos, dos múltiplos recursos persuasivos
disponibilizados pela grande semiologia humana: linguagem verbal e não-verbal – a
fotografia, os mitos, as artes entre outros signos que direta ou indiretamente possam
valorizar, legitimar, “ideologizar”, “fetichizar”, enfim, aperfeiçoar o processo de
interpretação do objeto de consumo pelo público consumidor (ECO, 2000; FARIA,
1979a, 1979b). Esse processo de múltiplas facetas, relativamente ao ato de persuadir,
revela-se como o espelho da sociedade de consumo na qual se sustenta um modelo
social capitalista.
Todavia, se de um lado tudo vale a pena, mesmo que a propaganda seja pequena;
do outro, há exigências bem definidas no que concerne à eficiência da informação. Do
ponto de vista social, a qualidade de um texto de propaganda não se pauta apenas nas
suas estratégias verbais e não-verbais de persuasão, mas também no seu papel como
veículo formador de opinião. Pois, no comércio, entre os pólos da produção e o do
2029
consumo está estabelecida uma rede complexa de relações humanas que envolve
segmentos da sociedade – social, político, econômico, etc. – norteados por diferentes
valores, interesses e, porque não dizer, ambições. Assim, o ideal seria que na escritura
de diferentes gêneros de textos de propaganda concorressem critérios relativos à ética e
à moral, nos sentidos mais amplos dos termos, e, no sentido mais específico, as demais
propriedades lingüístico-discursivas que garantissem a sua eficiência informativa.
Infelizmente, no mundo da propaganda, no afã para “fazer crer” e “fazer fazer”,
usa-se subterfúgios de convencimento nem sempre condizentes com a realidade
fenomênica do objeto em questão. Os múltiplos meios de comunicação midiática
apontam caminhos segundo os seus interesses, tornando-se, muitas vezes, canais
formadores de opiniões equivocadas e, por conseguinte, maléficas para o público
consumidor, nem sempre suficientemente esclarecido para não se deixar levar pelas
trapaças discursivas da comunicação (FARIA, 1979; FIORIN, 2003).
Isso posto, tendo em vista o papel formador da escola e a sua co-participação no
processo de aperfeiçoamento da sociedade e, em termos mais específicos, a sua
responsabilidade com a vivência pedagógica dos usos e das funções da linguagem, tanto
nas práticas orais quanto nas escritas, o estudo dos diferentes gêneros de textos de
propaganda é fundamental para o aperfeiçoamento das múltiplas atividades de interação
verbal estabelecidas entre os sujeitos falantes.
No contexto acadêmico-pedagógico, professor e aluno têm o grande desafio de
compreender o texto como um produto histórico-social que se relaciona a outros textos
já lidos e/ou ouvidos. De modo que a sua leitura é apenas uma das leituras suscitadas
pelo texto, inerentemente aberto às múltiplas co-autorias no grande palco das relações
sociais. É nessa perspectiva, a do papel da escola no aperfeiçoamento da leitura e da
escrita dos diferentes gêneros de textos por meio dos quais a sociedade estabelece a
interação verbal que a motivação para o presente trabalho foi erigida.
2. BAKHTIN E A TEORIA DO DIALOGISMO
Tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro.
Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada
resolve. Duas vozes são o mínimo de vida (BAKHTIN, apud,
LUKIANCHUKI) 1
A questão norteadora da obra do teórico russo Mikhail Bakhtin é, sem dúvida, o
dialogismo, visto que essa é uma característica constitutiva da linguagem, perpassando a
questão do sentido e da significação. Isto é, a linguagem é estudada enquanto palco no
qual se travam as interações verbais, sendo elas o modo de ser social dos indivíduos.
Nesse sentido, Bakhtin entende dialogismo como as manifestações de diferentes vozes
sociais. Ou seja, os sujeitos não possuem, neles mesmo, o conhecimento do que é
veiculado pelo ato da enunciação, mas é na interação desses sujeitos, ou seja, é na
dialogicidade que o conhecimento é construído. Com efeito, é por meio do diálogo que
se confirma a unicidade do “eu”. Segundo o lingüista, o “eu” se liberta do peso do seu
“eu” único, fazendo-se um “outro” para os outros, escondendo-se, dessa forma, no
outro. Em outras palavras, um sujeito não pode ser considerado isoladamente, ele
constrói-se sempre no processo da sua inter-relação com outros.
1
Texto disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/sinergia/claudia2.html
2030
Nessa mesma perspectiva lingüística e filosófica, Dahlet (2005) defende a idéia
de que o indivíduo é um sujeito social, pois é por meio do signo que age com outros
sujeitos e, por conseguinte, se constitui de tudo aquilo que ele não é. Então, um sujeito
não pode ser conhecido, se não dentro do discurso que ele produz. Em outros dizeres, o
sujeito é falado no discurso. Conseqüentemente, vem a lume o caráter intersubjetivo
(social) do discurso, no que diz respeito à teoria dialógica. Se o sujeito é constituído de
tudo aquilo que ele não é, é coerente afirmar, portanto, que o que ele faz é imitação,
ainda que essa imitação seja resultante de suas opções no bojo das suas relações com o
outro. Então, parece ser possível dizer que é nesse processo de escolha que o indivíduo
constitui o seu eu, a sua identidade, no seu discurso.
Os filósofos gregos concebiam a subjetividade da seguinte forma: Deus é o
único que cria, o homem apenas imita. Um exemplo claro disso, hoje em dia, são os
trabalhos científicos. Ninguém desenvolve uma pesquisa sem que tenha um ponto de
referência, isto é, é a partir de idéias já ditas que se constroem novas idéias. Dessa
forma, o sujeito do discurso é pura alteridade, porque, conforme já dito, ele só se
constitui como tal no discurso, confrontando-se com vozes variadas. Com efeito, é por
meio da consciência do outro que ele conhece o seu “eu”.
Se tudo o que se faz é imitação, pode-se dizer que o discurso de um sujeito
nunca estará acabado, já que nele se encerram diferentes sopros de vozes e sentidos
conflitantes. Nesse sentido, parece ser possível dizer que o discurso alheio aparenta ser
de um sujeito, quando, na verdade, é de outro, pois a palavra 2 do outro exerce grande
influência no “eu”. Então, é pertinente a metáfora de que o sujeito é uma lacuna a ser
preenchida, sendo que esse espaço vazio será ocupado por diversos indivíduos na
formulação do enunciado. Por exemplo, no contexto de um discurso político, o locutor,
dependendo da posição que adotar, poderá ou não comprometer sua imagem. Então, ele
toma posse dos dizeres, conhecimentos, de diferentes discursos que, aliás, autorizam o
seu dizer (ORLANDI, 2001), a fim de construir uma imagem, segundo a sua
interpretação das expectativas do público que o ouve. Assim, na sociedade em geral,
diante dos mais diferentes contextos enunciativos são as máscaras que prevalecem.
Segundo Bakhtin (apud DAHLET, 2005), a vida é dialógica por natureza. Com
efeito, ignorar a sua natureza é o mesmo que apagar a ligação existente entre a
linguagem e a vida. Nesse sentido, viver significa participar de um diálogo (BARROS,
2005). Logo, a identidade de um ser é o reflexo daquele ser ao qual se opõe. Entretanto,
mesmo nessa relação de troca, há o que pode ser chamado de unicidade, algo que é
realmente individual ao sujeito, pois este ocupa um lugar no mundo que é único e,
assim, o diferencia de qualquer outro sujeito, sendo, portanto, um sujeito de vontade e
idéia próprias.
Para entender-se a unicidade, é salutar dizer que o dialogismo bakhtiniano
apresenta o sujeito como um sujeito de consciência. Nessa perspectiva, Chauí (apud
BRANDÃO, 2005, p. 266) diz que a consciência
é uma capacidade, ou melhor, um poder de síntese, uma
atividade que reconhece ou que produz, a partir de si mesma o
sentido do real, pela produção de idéias ou conceitos dos
objetos e dos estados interiores; estas atividades
2
É importante ressaltar aqui que ‘palavra’ não está sendo usada no seu sentido lexical, e sim discursivo.
2031
epistemológicas e esse poder definem aquilo que a Filosofia
denomina o Sujeito.
Para Bakhtin (apud BRANDÃO, 2005), é pela consciência do outro que o
sujeito se desperta para a sua própria consciência. O que diz respeito a este sujeito,
chega à sua consciência por meio da palavra do outro, sendo, dessa forma, com o olhar
de outrem que ele se comunica com o seu interior. Por conseguinte, diz-se que a
autoconsciência também é dialógica, pois nela entrecruzam-se várias vozes. Assim, o
sujeito, entre o eu e o outro da sua consciência, optará por “revelar” um deles, de acordo
com a sua vontade, contemplando, portanto, a natureza polifônica do discurso. O que
isso ocasiona, então, é um debate de consciência, como considera o semanticista russo:
nossa consciência parece também nos falar através de duas
vozes independentes uma da outra e cujas falas são opostas [...].
“Essa ação, se eu a praticar, será uma má ação”. Essa ‘voz de
minha consciência’ deveria, na verdade, fazer ouvir o que se
segue: “Essa ação, se você a praticar, será uma má ação, do
ponto de vista de outros homens, representantes mais eminentes
da classe social a que você pertence” (TODOROV, apud
DAHLET, 2005, p. 60-61).
Por fim, é possível dizer que a consciência individual é de natureza sociológica,
já que seu fundamento é a lógica da comunicação ideológica e da interação de um grupo
social (BAKHTIN, apud ZOPPI-FONTANA, 2005). Então, conforme já exposto, o
homem se constitui como sujeito pelo e no discurso, sendo, portanto, o efeito dele.
2.1 Intertextualidade, interdiscursividade e polifonia
A intertextualidade e a interdiscursividade estão relacionadas ao sistema de
produção do sentido, sendo resultantes da interferência de diferentes vozes3. Fiorin
(2003) entende por texto o lugar de manifestação da língua, unidade básica de
organização e de transmissão de idéias, formando um todo gerador de sentido, e o
discurso como sendo um efeito de sentido, um processo no qual os percursos temáticos
e/ou figurativos de outro discurso são apropriados. Segundo Blikstein,
De início, não é demais lembrar que o discurso, seja qual for, nunca é
totalmente autônomo. Suportado por uma intertextualidade, o
discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes,
geradoras de muitos textos que se entrecruzam no espaço, a tal ponto
que se faz necessária toda uma escavação “filológico-semiótica” para
recuperar a significação profunda dessa polifonia. Cabe, então, a essa
“filologia-semiótica” detectar toda a rede de isotopias que governam
as vozes, os textos e, finalmente, o discurso (2003, p.45).
3
Vale dizer que a intertextualidade pressupõe a interdiscursividade, ao passo que o contrário não
acontece.
2032
A intertextualidade refere-se ao diálogo entre textos, nos seus processos de
reprodução, construção ou transformação do sentido. Em outras palavras, a
intertextualidade pode ser entendida como a “incorporação” – a citação, a alusão e a
estilização – de um texto em outro. A citação é uma transcrição de texto alheio,
marcada pela confirmação ou alteração do texto original. A alusão acontece quando são
reproduzidas construções sintáticas, podendo ou não ser citadas palavras do texto que se
utiliza. Pode ocorrer, por exemplo, alusão de figuras, quadros, personagens, etc. Já a
estilização é entendida como a incorporação do estilo do discurso de outrem (FIORIN,
2003).
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis,
com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas,
tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós
muito bem olharmos, não se envergonhavam (ou: não nos
envergonhamos).
Pero Vaz de Caminha. Carta (fragmento)
As meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com os cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
Oswald de Andrade. Pau-Brasil.
No seu poema, o poeta Oswald de Andrade, com poucas, porém significativas
alterações, cita as palavras de Pero Vaz aplicando-as a uma nova situação lingüística: as
meninas a quem se refere são prostitutas que ficavam na antiga estação terminal de
Santos (chamada de gare). Quanto à alusão, o modernista usa frases da Carta pra
construir seu texto (“Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e
gentis”, retomada por Oswald: “Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis”,
etc.), bem como se apropria do estilo de texto descritivo de Pero Vaz (“e suas
vergonhas, tão altas e tão cerradinhas” versus “E suas vergonhas tão altas e tão
saradinhas”).
À luz do pensamento de Fiorin (2003), a interdiscursividade é o processo por
meio do qual são incorporados percursos temáticos e/ou figurativos em outro discurso.
Existem dois processos interdiscursivos: a citação e a alusão. A citação se caracteriza
pela repetição de idéias de discursos alheios.
Em 2006, no processo de eleições presidenciais, os candidatos Luís Inácio da
Silva (Lula) e Geraldo Alckmin repetiam as mesmas temáticas, porém com idéias, ou
seja, visões políticas diferentes, de modo que seus discursos pertenciam a formações
discursivas distintas, principalmente do ponto de vista político-ideológico.
A alusão, afirma Fiorin (2003), ocorre “quando se incorporam temas e/ou figuras
de um discurso que vai servir de contexto (unidade maior) para a compreensão do que
foi incorporado”. Este foi o recurso utilizado em uma figura bastante divulgada durante
a última eleição, a qual ironicamente mostrava Lula fazendo com as mãos o número 45
(o presidente tem um dedo a menos na mão direita). Quem não soubesse que o
candidato Alckmin tinha 45 como número, não entenderia o efeito que se quis criar, a
2033
saber, que, ao mostrar as duas mãos, uma com cinco e a outra com quatro, Lula
representava o número 45, isto é, o do candidato opositor.
3. ANÁLISE
Nihil mihi paintabiluis violetur quam posse, dicendo, tenere
hominum coetus, mentis allicere, voluntates impéllere quo velit4
O título do texto, Eu tenho uma outra dentro de mim, de início, já aponta a
relação de intertextualidade com um dos paradigmas que norteia o dispositivo teórico da
psicanálise. 5 Essa relação é construída por meio do que Marcuschi e Koch (1998)
denominam de operação de enquadre (MARCUSCHI E KOCH 1998). 6 No caso, o
autor lança mão da criatividade, usando, de modo não contratual, a estrutura de um
texto para construção de outro pertencente a um domínio cultural — o do prazer de se
deliciar um doce — completamente diferente. Assim, se na psicanálise a superposição
de outros dentro de um “eu” se constitui um conflito, na Fruittella, os vários sabores em
uma só bala constitui um prazer.
A intertextualidade não é estabelecida apenas por recursos verbais. O espaço de
um consultório: um divã, um psicanalista fazendo anotações e o diploma pendurado
formam o cenário propício para legitimar a cenografia (MAINGUENEAU, 1998)
construída pelo autor. Nesse caso, nos termos de Maingueneau, a cenografia, o texto de
propaganda dentro do “enquadramento” de um texto de psicanálise, provocando um
deslocamento, faz com que o leitor caia numa cilada que, espera a Fruittella, seja
agradável. Esse é o esforço do autor para legitimar a enunciação e, dessa forma,
constituir e instituir o seu discurso.
O processo dialógico que institui a relação interdiscursiva do texto se processa
por meio da alusão e de recursos figurativos; estes últimos efetivados na caricatura do
cenário. A cena genérica, uma revista de “amenidades” da classe alta, a cena
englobante, um texto de propaganda, e a cena validada, uma cena em um consultório de
psicanálise (MAINGUENEAU, 1998), constituem as tensões entre o discurso
psicanalítico e o discurso da propaganda da Fruittella. Conforme já exposto, essas
tensões se dão por meio do deslocamento, ou seja, o que é conflito para a psicanálise
não o é para a Fruittella.
Nesse caso, o “prazer psicanalítico” é o dado inaugural do texto da Fruittella,
que se distingue de outras balas, porque contêm duas balas, dois sabores, dois prazeres
em apenas uma bala. A força dialógica do texto é constituída por múltiplas vozes sociais
oriundas de múltiplas formações discursivas. No caso, vozes enunciadas não só pelo
universo psicanalítico, comumente constituído de pessoas com alto poder aquisitivo,
4
Nada me parece mais útil do que poder, falando, manter as assembléias dos homens, aliciar as mentes,
impelir as vontades para onde se queira (Marcus Tullius Cícero, séc. I a.C.).
5
De acordo com a teoria psicanalítica, o sujeito pode se dividir em um sujeito interior e um exterior. A
interioridade refere-se ao sujeito individualizado, ao passo que a exterioridade é tida como “o outro”
compondo um sujeito, o “eu” (interdiscurso). Ainda, segundo a teoria psicanalítica, a exterioridade se
encontra no Outro do inconsciente (ZOPPI-FONTANA, 2005, p. 116).
6
“Operações de enquadre: uma determinada expressão pode evocar um conjunto de propriedades,
relações ou associações (frames, cenários, esquemas, etc.) [...]” (MARCUSCHI; KOCH, 1998, p. 5).
2034
mas também pelo coro de vozes do público objeto de interesse da revista Caras —
artistas, empresários, socialites — e demais indivíduos alvo da mídia. Essas diferentes
vozes representam elementos históricos e sociais distintos, que intercruzam-se e
permitem a formação de um novo texto, o da Fruittella. De modo que, nesse processo de
grandes percursos temáticos, a força polifônica objetiva induzir o leitor-consumidor a
adquirir o produto. Ainda, ao utilizar os dizeres legitimados pela psicanálise, cujo
acontecer mexe com o status quo da maioria dos indivíduos que norteiam a feitura dos
textos da Caras, o autor tenta alcançar o íntimo de cada pessoa, reforçando a
“legitimidade” do produto.
Como dizia Lavoisier (1789), “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Esse consenso também pode ser aplicado à linguagem, posto que, devido à sua natureza
histórica e à sua plasticidade, principalmente, ela é dotada da latência sígnica, ou seja,
está sempre a espera do fôlego da vida das vozes que em diferentes contextos históricos
e sociais lhe atribuem pertinência comunicativa. Em termos filosóficos abrangentes, o
autor do texto da Fruittella contou com a potencialidade de proliferação (FOUCAULT,
1995) da linguagem. Tudo para vender a bala Fruitella.
O sujeito do texto de propaganda da Fruittella é resultante do assujeitamento
(ORLANDI, 2001) às forças ideológicas emanadas da marca Fruittella, o seu texto será
avaliado segundo a sua capacidade de convencer o público a cair na cilada da sua
argumentalogia, comprando o doce psicanaliticamente milagroso. Pelas forças sopradas
pelo coro de vozes do universo de feitura da Caras, pelos possíveis universos nos quais
a revista Caras pode ser inserida, e, finalmente, pelo seu próprio universo, ou seja, o seu
contexto social no qual entram em jogo o sopro de vozes concernentes a questões
financeiras, estabilidade profissional, entre outros imperativos. Com efeito, o sujeito do
texto é um ser ideologizado por múltiplas forças que o constitui no discurso da
propaganda, fora dessa limitação, não sabemos quem ele é.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredita-se que a presente análise, embora sucinta, conseguiu identificar como
as relações intertextuais, interdiscursivas e polifônicas concorreram para a construção
do texto de propaganda da Fruittella e, por conseguinte, para a constituição do sujeito
falado no discurso.
No que concerne ao aperfeiçoamento da leitura, foi fundamental identificar os
processos de determinação dos efeitos de sentidos veiculados pelo texto, processos estes
que, de fato, não entram no mérito do objeto alvo do discurso, a saber a bala Fruittella.
Em outros dizeres, a dialogicidade do discurso, em nenhum momento se pauta nos
elementos constitutivos da coisa em questão: do que a bala é feita, como é feita, quais
são as suas propriedades alimentares, etc. Aliás, é muito provável que o sujeito do
discurso não saberia dar essas informações, porque essas evidências não fazem parte do
mérito do seu trabalho. No palco do drama do texto de propaganda o clímax se efetua na
venda.
Não está no escopo espacial da presente análise explorar os elementos que
constituem a “concretude” da bala Fruittella: os tipos de componentes da bala, a
natureza dos componentes, ou seja, se são químicos (ácidos com sabores artificiais,
conservantes, etc.), ou naturais (muito dificilmente!), entre outros dados que dariam o
seu perfil fenomênico. Esse percurso analítico constitui um desafio para a continuidade
2035
do presente empreendimento. Pois, no processo de ‘desmontagem’ do texto poderia se
identificar o grau de mascaramento de um discurso cujo dizer é legitimado pelo uso
“deslocado” de outros discursos, outras vozes pertencentes a outras realidades históricas
e sociais, mas nem por isso isentas de se moldarem a outros interesses enunciativos.
Entende-se que é nesse processo de desmontagem que seria erigida a atuação do
leitor crítico, político, capaz de identificar as estratégias discursivas de enlaçamento e,
no caso em questão, de desvio das informações que efetivamente pudessem esclarecer o
público consumidor sobre os atributos do que está posto a venda.
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2038
Anexo
2039

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