fernanda ferreira jean-jacques rousseau e a formação do homem

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fernanda ferreira jean-jacques rousseau e a formação do homem
FERNANDA FERREIRA
JEAN-JACQUES ROUSSEAU E A FORMAÇÃO DO HOMEM NOVO
CURITIBA
2003
FERNANDA FERREIRA
JEAN-JACQUES ROUSSEAU E A FORMAÇÃO DO HOMEM NOVO
Monografia apresentada ao Curso de
História, Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em História.
Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Ana Paula
Vosne Martins.
CURITIBA
2003
RESUMO
Este trabalho trata da análise da obra Emílio ou da Educação (1762) de JeanJacques Rousseau (1712-1778), filósofo iluminista. Procurou-se compreender como
Rousseau pensa a formação pedagógica do homem, enquanto gênero masculino, para
atingir um tipo ideal de homem de acordo com o ideário iluminista, ou seja, um
indivíduo que não fosse corrompido pelos vícios da sociedade, que tivesse uma
abertura mental para proceder de modo racional e assim ser feliz. Para examinar essa
fonte, segui, em especial, a linha de análise dos estudos de Ernst CASSIRER, Jean
STAROBINSKI e Luiz R. Salinas FORTES os quais salientam a importância de
conhecer o contexto e a vida do escritor, pois isso faz com que o pesquisador encontre
o centro dinâmico do seu pensamento. Estudou-se, então, o contexto da sociedade
francesa do século XVIII, o ideário iluminista, a vida de Rousseau e suas obras, com o
objetivo de entender os princípios da pedagogia rousseauniana e o homem novo,
representado no personagem Emílio.
À minha família: João, Marília e
Carlos Alexandre, pelo amor e incentivo.
À
professora
Ana
Paula
pela
orientação e dedicação.
Ao Marcos e aos meus amigos do
curso de História, pela fraternidade e
apoio.
Costuma-se dizer que a árvore impede a visão da
floresta, mas o tempo maravilhoso da pesquisa é
sempre aquele em que o historiador mal começa a
imaginar a visão de conjunto, enquanto a bruma que
encobre os horizontes longínquos ainda não se
dissipou totalmente, enquanto ele ainda não tomou
muita distância do detalhe dos documentos brutos, e
estes ainda conservam todo o seu frescor. Seu maior
mérito talvez seja menos defender uma tese do que
comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta,
torná-los sensíveis – como ele próprio o foi – às cores
e aos odores das coisas desconhecidas.
(Philippe Ariès, História social da criança e da
família)
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................1
2 O IDEÁRIO ILUMINISTA.......................................................................................4
2.1 O “ANTIGO REGIME” FRANCÊS.........................................................................4
2.2 ILUMINISMO...........................................................................................................6
2.2.1 A pedagogia iluminista.........................................................................................11
3 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ROUSSEAU.......................................15
3.1 BIOGRAFIA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU.................................................16
3.2 A FASE PESSIMISTA DE ROUSSEAU: DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS
ARTES E DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA
DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS.....................................................................18
3.3 A FASE OTIMISTA DE ROUSSEAU: CONTRATO SOCIAL E EMÍLIO OU DA
EDUCAÇÃO..................................................................................................................21
4 EMÍLIO DE ROUSSEAU........................................................................................26
4.1 EDUCAÇÃO NEGATIVA.....................................................................................27
4.2 EDUCAÇÃO POSITIVA........................................................................................31
4.3 EDUCAÇÃO DE SOFIA........................................................................................35
4.4 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA EDUCAÇÃO MASCULINA E DA
EDUCAÇÃO FEMININA PRECONIZADAS POR ROUSSEAU..............................43
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................47
REFERÊNCIAS..........................................................................................................50
1 INTRODUÇÃO:
O campo da reflexão filosófica usou
repetidamente o estilo literário como meio de os filósofos
expressarem seus conceitos sobre o mundo e as pessoas.
(A leitura da História na Literatura, B. Ogleari;
D. Medeiros)
É necessário estudar a sociedade pelos homens e
os homens pela sociedade, se alguém desejar tratar
separadamente a política e a moral não entenderá jamais
nenhum dos dois.
(Emílio, Jean-Jacques Rousseau)
A literatura é um instrumento privilegiado para se vislumbrar o passado. Pelas
páginas dos romances desfilam os personagens de uma determinada época,
reconstituídos pelo olhar, arguto ou ingênuo do autor mas um olhar da época, sem os
filtros da distância. O autor deixa não só a imagem de sua época, mas também a idéia
de futuro em que ele acreditava. Diante dessas percepções, A Nova História Cultural
acrescenta aos estudos históricos a fonte literária, a qual, sem dúvida, é um ponto de
partida privilegiado para se buscar conhecer modos de vida, cultura e educação.
Tendo isso em vista, este trabalho trata do romance didático, Emílio ou da
Educação, de Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista do século XVIII. Esta obra
foi publicada em 1762. O autor imaginou um aluno, Emílio, cuja educação descreve
em cinco livros. Os quatro primeiros livros seguem as diferentes fases da vida do
educando: bebê, criança, adolescente e adulto, e no quinto, trata particularmente de sua
futura esposa, Sofia.
Rousseau se aplicou muito mais ao problemas gerais e universais da educação.
E entre os problemas principais, ele escolheu aquele que é independente de quaisquer
diferenças: a humanidade de que todos participam. A pedagogia interessa a Rousseau
enquanto parte de algo mais abrangente, da filosofia, assim Emílio, além de ser um
tratado pedagógico, é um estudo filosófico sobre o homem. Exatamente por ter
considerado a educação do homem por seus aspectos mais universais, o seu livro é
sempre atual.
Devido a extensão e profundidade da análise de Rousseau a respeito do homem
e de tudo que está ligado a esse, muitas pesquisas podem ser feitas dentro do Emílio.
Respeitando as intenções e os limites de uma monografia, valer-me-ei do seguinte
recorte: analisar a formação pedagógica do homem, enquanto gênero masculino, para
atingir um tipo ideal de homem de acordo com o ideário iluminista. O que caracteriza
o Iluminismo é a valorização do homem e uma profunda crença na razão humana e nos
seus poderes. Revalorizar o homem significa, antes de tudo, encará-lo como devendo
tornar-se sujeito e dono do seu próprio destino, é esperar que cada homem, em
princípio, pense por conta própria. Com isso, surge entre os iluministas um novo
discurso sobre o tipo ideal de homem, guiado não mais pelo divino ou pelo destino e
sim pela razão. Para isso, tornava-se necessário uma teoria da educação que tomasse
conhecimento do homem tal como ele é, mas que ao mesmo tempo fosse voltada para
uma ética e uma política, para uma concepção do homem ideal e da sociedade na qual
ele deve integrar-se. Para atingir tais ideais Rousseau escreveu Emílio e Contrato
Social.
A obra Emílio, quando publicada, tinha uma intenção renovadora e isto punha
em discussão toda a estrutura da sociedade. Para levar a bom termo a volta ao “homem
natural”, degenerado, segundo ele, por uma civilização artificial, contrária a natureza,
fazia-se mister educá-lo convenientemente. Assim, com o Emílio, a filosofia de
Rousseau ganhava força e homogeneidade, rica de idealismo, confiante na recriação
do mundo moldado na moral e na justiça.
Para examinar essa obra, segui, em especial, a linha de análise de Ernst
CASSIRER, de Luiz R. Salinas FORTES e de Jean STAROBINSKI que, em suas
obras, salientam a importância de conhecer o contexto e a vida de Rousseau, pois isso
faz com que o pesquisador encontre o centro dinâmico do pensamento propiciando
uma análise minuciosa da obra. Para estes, o intérprete deve considerar as doutrinas
não como uma série de posições discretas, mas como facetas de um ponto de vista
único. O instrumental do crítico deve, portanto, incluir o dom da empatia: ele deve
visitar – na verdade, reviver – com simpatia o contexto, a vida e o mundo das idéias do
pensador.
Além do estudo da bibliografia secundária, considerei imprescindível a consulta
a outros livros de Rousseau, pois percebi que Emílio é incompreensível fora do
contexto geral das obras. Sendo assim, estão presentes, nesta monografia,
considerações sobre o Discurso sobre as ciências e as artes, o Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e o Contrato Social.
No trabalho, analiso o contexto da sociedade francesa do século XVIII, o
ideário iluminista, a vida de Rousseau e finalmente suas obras, principalmente Emílio,
no qual destaco as etapas da formação do homem e de sua esposa, pois para o autor a
educação feminina deve ser relativa à educação masculina, com o objetivo de
entender os princípios da pedagogia rousseauniana e como deve ser o homem novo
proposto por Rousseau, representado no personagem Emílio.
2 O IDEÁRIO ILUMINISTA
Considero imprescindível para uma boa análise literária, a compreensão do
contexto histórico e social da obra. Sendo assim, neste capítulo tratar-se-á da
sociedade francesa do século XVIII e do movimento intelectual denominado
Iluminismo, ideologia predominante do século, no qual Emílio ou da Educação de
Jean-Jacques Rousseau foi escrito.
2.1 O “ANTIGO REGIME” FRANCÊS
A sociedade francesa do século XVIII estava dividida em três ordens ou
Estados e seu regime político era a monarquia absoluta. No alto da pirâmide social da
França, estava o rei, cujo poder passou a ser vitalício e hereditário; em seguida,
vinham o clero e a nobreza, constituindo o Primeiro e Segundo Estados; abaixo deste,
o Terceiro Estado onde se incluíam a burguesia, o baixo clero, os trabalhadores
urbanos e os camponeses.
Segundo RÉMOND,
A ordem, efetivamente, define-se por um estatuto que comporta, ao mesmo tempo,
prerrogativas e obrigações, umas e outras devendo equilibrar-se normalmente (...) Pertence-se
a uma ordem pelo nascimento, em relação à nobreza e ao terceiro estado (...) Essa sociedade
não é uma sociedade estereotipada: as ordens não constituem castas; há possibilidade para o
enobrecimento.1
A divisão da sociedade em três ordens repousa originalmente numa diferença de
funções. O clérigo, o homem da Igreja, tem por função rezar pela comunidade, prestar
culto a Deus. A essas funções essenciais, acrescentam-se outras ocasionais como o
ensino e a assistência. O nobre cuida da defesa, ele luta, protege, julga até,
acessoriamente. O terceiro estado trabalha, paga impostos destinados à construção de
obras públicas, à defesa do reino e ao sustento da sociedade de maneira geral.
Contudo, a evolução do governo, das relações sociais e da economia foi
alterando e rompendo progressivamente o equilíbrio entre direitos e deveres das
ordens. De acordo com RÉMOND, a opinião pública começou a se aperceber disso,
por alguns fatores2.
Primeiro, o desabrochar da monarquia absoluta. O desenvolvimento de uma
monarquia centralizada, administrativa, na qual o poder está concentrado nas mãos de
um soberano único, tira dessa organização social sua razão de ser e sua justificativa.
Com efeito, à medida que o monarca e seus conselheiros se apoderam destas e
daquelas atribuições que cabiam à aristocracia, os seus privilégios perdem sua
legitimidade. O equilíbrio tradicional entre seus deveres e seus direitos está rompido.
Contudo, privada de algumas de suas funções sociais, a nobreza pretende conservar os
privilégios, honoríficos ou pecuniários, que constituíam sua compensação. Porém,
como muito bem analisa RÉMOND, o monarca tende a desapossar a nobreza de seus
cargos, cuidando simultaneamente de domesticá-la.
Este é o significado da corte: a constituição, em torno da pessoa do rei, de uma sociedade
consagrada apenas a honrar a majestade real, reduz o papel da nobreza ao de curadora do
culto monárquico, a um papel puramente decorativo, que a constrange à ociosidade. Contudo,
ela conserva suas vantagens tradicionais, suas imunidades fiscais e suas isenções3.
Nessa vida palaciana, desenvolveu-se um ritual ostensivo de luxo e mordomias
financiado pelo terceiro estado, o qual passou a ficar descontente com essa situação.
Segundo, no século XVIII, a economia rural cede terreno ao capitalismo
comercial e, com isso, a terra começa a perder, à sua importância na economia e na
renda da nação. Como conseqüência a nobreza vê sua fortuna diminuir. Ao mesmo
tempo em que empobrece a nobreza, a evolução enriquece a burguesia, cuja
importância econômica aumenta: é a burguesia que contribui mais ativamente para o
enriquecimento do Estado. Ela vê também aumentar sua importância política, pois é
1
RÉMOND, René. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 52.
RÉMOND, op. cit. , p. 54.
3
Ibid, p. 55.
2
nela que se apóia a monarquia: é na burguesia que os soberanos recrutam seus
ministros e prepostos.
Concomitantemente a esses dois fatores de transformação social, como causa e
conseqüência, percebe-se o movimento no campo das idéias. Os filósofos percebem
que a organização social em ordens está envelhecida e não condiz mais com a
realidade. Questionam, segundo RÉMOND, as diferenças tradicionais e opõem, aos
preconceitos ou à tradição, o mérito pessoal e a superioridade do talento, pois
acreditavam que a sociedade estava baseada nas aparências, tanto no que diz respeito à
vida palaciana onde as palavras e ações dos nobres eram dirigidas ao reconhecimento
pessoal, como na situação das ordens, enquanto os nobres levavam uma vida de gastos
abusivos sem contribuir com o Estado, grupos do terceiro estado sustentavam o Reino.
Até mesmo o pensamento clerical já não condizia com a realidade da sociedade, pois o
Renascimento Cultural e da Revolução Científica do século XVII mostraram as
deficiências dos pressupostos da visão aristotélica do mundo que caracterizaram a
Idade Média e abalaram a autoridade da Igreja.
Os filósofos do século XVIII que, influenciados pelas novas idéias do
Renascimento e da Revolução Científica do século XVII, passaram a questionar a
sociedade são identificados como iluministas e o seu pensamento Iluminismo.
2.2 ILUMINISMO
É um ser pensante, sensível, capaz de refletir, que
se desloca livremente sobre a face da terra, que
parece vir à cabeça de todos os animais que
domina, que vive em companhia, que inventou
ciências e artes, que possui uma bondade e uma
maldade que lhe são próprias, que estabeleceu
padrões para si próprio, que criou leis,...
Diderot e d, Alembert, Enciclopédia
Em termos gerais, o Iluminismo pode ser definido como um movimento
intelectual que se registrou em muitas regiões da Europa, contudo o seu principal
centro foi a França, predominantemente no século XVIII e que procurava combater as
superstições que obscureciam o conhecimento e buscava entender os fenômenos
naturais e sociais orientados pela crença na razão e no progresso, com o intuito de
reformar determinados aspectos sociais objetivando a felicidade terrena para a
humanidade. Os principais iluministas franceses foram Voltaire (François-Marie
Arouet), Montesquieu (Charles Louis de Secondat), Denis Diderot e Jean-Jacques
Rousseau.
Antes de um maior aprofundamento nas questões do Iluminismo, é necessário
deixar claro que essa não é uma doutrina sistemática susceptível de ser exposta como
um todo uno e coerente, também não é uma seita, confraria ou partido político. Ao
contrário, os iluministas tinham pensamentos iguais sobre determinados aspectos e
divergentes sobre outros. Segundo FORTES,
nenhum laço orgânico une os livres pensadores aos quais se costuma associar a designação
que nos ocupa (...) achamo-nos, isso sim diante de um movimento de idéias que se manifesta
através de uma grande variedade de obras distintas, mas que, no entanto, participam de um
‘espírito’ comum4.
Para esse autor, o que unia os iluministas é a idéia de liberdade. Nesse sentido
pode-se constatar que a filosofia do Iluminismo em relação a filosofia do século
precedente renuncia o sistema metafísico, ou seja, não acredita na legitimidade nem na
fecundidade do espírito de sistema. Porém, não se pode falar, de acordo com
CASSIRER, que houve uma ruptura entre a filosofia destes dois séculos. Pois, ao
renunciar e combater o espírito de sistema, não renuncia o espírito sistemático, mas
procura analisá-lo de uma forma mais profunda. Em lugar de encerrar a filosofia nos
limites de um edifício doutrinal firme, em vez de vinculá-la a alguns axiomas
determinados, estabelecidos para sempre, e a suas conseqüências dedutivas, se esforça
em libertar a filosofia, em encontrar a forma fundamental da realidade, a forma de todo
ser natural e espiritual. A filosofia, nesta atitude, não significa um campo especial de
conhecimentos que se colocaria ao lado ou acima dos princípios do conhecimento
natural, jurídico, político, mas sim um meio no qual estes princípios se formam, se
desenvolvem e se assentam. Não se separa da ciência natural, da história, da
jurisprudência, da política, mas constitui seu polo vivificador. De estruturas fixas e
acabadas se convertem em forças ativas e de meros resultados em imperativos5.
Portanto, a filosofia do Iluminismo não procura utilizar a razão com um sistema
fechado, mas procura desdobra-lá pouco a pouco em conhecimento progressivo dos
fatos e assim mostrá-los de um modo mais claro e completo. Para os iluministas não
havia um sistema metafísico pronto e acabado, pois sempre há como aprender mais
sobre um conhecimento adquirido.
Os iluministas , de acordo com FORTES, queriam ter liberdade de pensamento
frente à tradição religiosa,
é com a condição de se conceber como livre no exercício da sua razão, como senhor de suas
opiniões e como fonte da sua própria verdade, que o universo inteiro poderá liberar-se, para o
homem, como um eventual campo de exercício para sua capacidade racional de explicação6.
Dessa forma, os iluministas substituíam a fé pela razão para explicar as “coisas
do mundo”. Liberdade de poder avaliar tudo que está a sua volta de uma forma
racional, ou seja, observar e adquirir uma explicação racional para o funcionamento
das “coisas do mundo”, para poder dominá-las e aperfeiçoá-las de maneira a melhorar
a vida do homem. Além de questionar a representação teológica do universo, os
iluministas criticavam o governo que de uma certa forma fazia parte dessa
representação, pois o absolutismo monárquico era fundado no Direito Divino do Rei; e
os grupos sociais dominantes, clero e nobreza, que viviam ainda de acordo com um
pensamento medieval. Assim, segundo FORTES,
p.14.
4
FORTES, Luiz R. Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1993.
5
CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustacion. Pánuco: Fondo de Cultura Económica, 1950.
p. 17-52.
para os iluministas a Razão deveria ser um instrumento soberano de conhecimento e uma
instância suprema incumbida de reger os destinos históricos do homem e conduzir à sua
emancipação diante dos preconceitos do passado, reformando a sociedade em que viviam e
procurando o aperfeiçoamento constante da humanidade7.
Neste ponto pode-se entender a epígrafe acima, ou seja a valorização do homem
descrita na Enciclopédia, pois a partir do ideal de razão dos iluministas, um novo
objeto de estudos começa a se desenhar no horizonte: o próprio homem. Uma nova
ciência começa a se impor: a História. Os homens percebem, através do estudo do seu
passado, que a massa de conhecimentos adquiridos pode ser utilizada e posta a serviço
do seu próprio bem-estar. Surge, por conseguinte, como um corolário necessário de
todas estas descobertas uma nova idéia reguladora, ou seja, a idéia do progresso. Se o
universo é inteiramente racional existindo leis ao mesmo tempo racionais, naturais e
universais, como foi demonstrado pelo avanço das ciências naturais, de Galileu Galilei
a Isaac Newton, para os iluministas era absolutamente legítimo esperar que a razão
pudesse também governar as instituições sociais.8 Segundo Falcon, essa era, portanto,
a grande tarefa do Iluminismo: “fazer o balanço e a divulgação dos enormes
progressos já alcançados pela razão teórica e prática (as ciências e as técnicas) e
empreender a investigação das leis que dizem respeito diretamente ao homem –
individual e social”9, o acúmulo e a multiplicação dos conhecimentos permitiria ao
homem cada vez mais dominar ou domesticar a Natureza, racionalizando e
melhorando indefinidamente suas condições de vida.
Objetivando o primado absoluto da razão, princípio e garantia do progresso da
humanidade, uma vez que este se identifica com o avanço do conhecimento
verdadeiro, o pensamento iluminista, segundo FALCON, “estrutura” as principais
6
FORTES. op. cit. , p. 16.
Ibid., p. 20.
8
FALCON, Franscisco J. C. Iluminismo. São Paulo: editora Ática,1994, p. 39.; BERLIN, I.
Limites da utopia : capítulos da história das idéias. São Paulo : Companhia das Letras, 1991, p. 39.
9
FALCON, Franscisco J. C. Iluminismo. São Paulo: editora Ática,1994, p. 39-40.
7
categorias da sensibilidade intelectual do século XVIII:
a antropologia e a
pedagogia10.
A antropologia, isto é, o estudo do homem ou da humanidade, de acordo com
BAUMER, tornou-se a nova rainha das ciências, destituindo a filosofia naturalista que
fora tão absorvente no século XVII, tal como a teologia, a velha rainha da cultura
cristã. Isso porque, como dito acima, os iluministas acreditavam que o homem, através
da razão, poderia tornar o mundo melhor para a raça humana.11 Não era mais
necessário esperar pela morte para poder viver no paraíso, poderia ser feito, pelos
homens, do mundo terreno o paraíso.
Assim, a questão do homem tornou-se própria do pensamento do século XVIII.
Houve, durante todo o século, um debate continuamente repetido, em torno de certas
questões-chave que se interligavam. O homem nascera bom, mau ou neutro? A sua
natureza era estabelecida para sempre, ou era mutável e, portanto, provavelmente
melhorável e mesmo aperfeiçoável? No último caso, como é que essa mudança se
efetuava? – de dentro ou de fora? Até que ponto o homem era racional, e até que grau
era controlado pelas paixões e pelo interesse próprio? Eram todos os homens iguais, no
tocante à natureza, ou tinha de distinguir-se entre uma élite, especialmente dotada, e a
humanidade comum, o povo? As respostas a essas questões, segundo BAUMER, fez
surgir estudiosos pessimistas e otimistas sobre a natureza do homem. Os segundos
produziram, entre outras, a imagem do “homem perfectível”, a qual interessa aqui
porque trata-se da imagem que Jean-Jacques Rousseau fazia do homem.
A doutrina da perfectibilidade, significando possível mudança para melhor, está
normalmente associada ao triunfo do sensualismo lockeano, que, na verdade, sugeria o
equilíbrio a favor da educação sobre a natureza. Os iluministas acreditavam que
através da educação era possível moldar o homem até conferir-lhe a forma preferida,
havendo assim, a superação do ser humano, surgindo o tipo ideal de homem – o
10
FALCON, Franscisco J. C. Iluminismo. São Paulo: editora Ática,1994, p. 42.
BAUMER, F. L. O pensamento europeu moderno. Vol. I Rio de Janeiro : Edições 70,
1977, p. 183-185.
11
“Homem das Luzes” ou o “Homem Novo”, e o encontro com a felicidade terrena. Mas
essa pedagogia deveria começar pela infância, pois é neste momento que convém
moldar o ser humano, a fim de o preparar para a sua função de Homem,
desenvolvendo as suas boas tendências e os seus conhecimentos mediante uma
educação adequada testemunhando uma abertura mental12.
Sendo assim, a educação adquire, sob tal enfoque, perspectiva totalizadora e
profética, na medida em que, através dela, poderiam ocorrer as necessárias reformas
sociais perante o signo do homem pedagogicamente reformado.
2.2.1 A pedagogia iluminista
Na Idade Média não havia diferenciação entre adultos e crianças, tanto que nos
quadros dessa época o menino Jesus era retratado como um anão. A criança era vista
como uma miniatura de adulto. Como conseqüência disto,
meninos e meninas eram tratados como pequenos homens e pequenas mulheres: eram até
mesmo vestidos segundo a moda de seus pais. Eram também obrigados a agir como pessoas
grandes; o afastamento desse tipo de conduta era considerado alienação e tratado com
mediadas severas13.
Na maioria dos textos medievais não se fazia referência à idade dos alunos, e
essa situação persistiu por muito tempo e por vezes eram constatadas no século XVII.
O que importava realmente era a matéria ensinada e não o estágio da existência.
De acordo com ARIÈS, foi graças aos moralistas e educadores do século XVII
que foi percebida uma infância mais longa ou intermediária entre a criança paparicada
e o adulto. Era a criança em fase escolar, a qual necessitava de disciplina para aprender
bons hábitos. Entretanto, essa tomada de consciência não foi instantânea. Para as
12
VOVELLE, M. (org.) O homem do iluminismo. Lisboa : Editorial Presença, 1997, p. 12.
OLIVEIRA, A. E. Jean-Jacques Rousseau: pedagogia da liberdade. Jõao Pessoa: Editora
Universitária/UFPb, 1977. p. 81.
13
crianças que não freqüentavam os colégios, os antigos hábitos de precocidade
persistiam como na Idade Média14.
Contudo, ARIÈS teve o cuidado de observar que a família do século XVII,
embora diferente da medieval, ainda não é o que ele chama de família moderna,
caracterizada pela ternura e a dignidade que ligam os pais aos filhos. Foi no século
XVIII, com o Iluminismo, que se cristalizaram as novas idéias e se deu um impulso
inicial à família moderna, isto é, a família fundada no amor materno15.
Então, pode-se dizer, que é com os iluministas que se descobre realmente a
infância como uma etapa diferenciada da vida do homem, e a educação deve ser
voltada para as crianças não apenas como a aprendizagem de conhecimentos, mas
também como a aprendizagem da moral, pois, deve-se começar a moldar o homem já
na infância desenvolvendo as suas boas tendências e os seus conhecimentos mediante
uma educação adequada.
Para uma melhor compreensão da pedagogia iluminista, seguindo os passos de
BOTO16, recorrer-se-á aos verbetes preceptor e educação da Enciclopédia, publicada
em 1750, que era apresentada por seus organizadores como uma obra da “sociedade de
letrados”, cujo duplo objetivo seria a exposição e a classificação do conhecimento, por
um lado; a delimitação dos princípios sobre os quais cada ciência se baseia, por outro,
o que faz dessa a obra que melhor denota o pensamento iluminista da época. Preceptor
é definido no texto enciclopédico como o indivíduo que se encarrega de instruir e
formar uma criança com a qual ele se instala no domínio da casa paterna. Ele deve
julgar o proveito que a lição trará, não mediante o testemunho da memória, mas da
vida. A Educação tem por objeto: a saúde e a boa conformação do corpo, aquilo que
concerne à retidão e à instrução do espírito e os costumes, ou seja, a conduta na vida e
as qualidades sociais.
14
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1981.
p. 186-187.
15
Ibid, p. 186-194.
16
BOTO, Carlota. A escola do Homem Novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo:
editora UNESP, 1996.
Quanto ao método de ensino descrito na enciclopédia, mediante princípios
herdados do naturalismo pedagógico – estilo consagrado pela Renascença –, a natureza
é apresentada como o guia condutor do processo educativo. Ao mestre, com
discernimento e experiência, caberia observar seus alunos, para então investigar seus
gostos e inclinações, com vistas a canalizá-los para o interesse social. O conhecimento
veiculado age, supostamente, como forma de prevenção dos males, sejam eles físicos
ou sociais. Além disso, é objeto da educação aclarar o espírito, instruí-lo e postular
suas normas e regras. O mestre deve ter talento para cultivar o espírito e torná-lo dócil,
sem, no entanto, o discípulo perceber isso.
Os primeiros anos da existência exigiriam, em relação ao espírito, um grande
desenvolvimento, já que seriam muito marcantes e duradouras as impressões recebidas
nesse período inicial. De acordo com a análise de BOTO, haveria um período em que
os órgãos sensoriais e o próprio cérebro atingem um estágio necessário para permitir à
alma exercer funções mais abstratas à luz de experiências gerais dos homens em suas
esferas de vida: é a idade da razão17. Assim, na Enciclopédia há a separação do homem
em criança e adulto, duas etapas da sua vida que devem ter métodos educativos
próprios.
Essa maneira de ver a educação marca um distanciamento com a pedagogia da
Companhia de Jesus, pois nessa, os programas, os métodos, os horários de ensino, os
fins e os meios, definidos uma vez por todas, serão os mesmos de uma ponta a outra
no “império” dos jesuítas. Professores intercambiáveis formavam em série alunos
semelhantes uns aos outros, segundo os mesmos procedimentos e cerimônias; a
unidade da língua latina simbolizava e facilitava a unidade da fé. O ensino torna-se
uma máquina institucional, que podia ser regrada de uma vez por todas e para todos.
O Iluminismo traz a público sua crítica veemente a esse método de ensino,
estipulando, para tanto, um novo retrato da infância que, como tal, contrariava esses
velhos hábitos da educação tradicional. Nessa valorização ilimitada da criança como
17
Ibid, p. 21-67.
etapa específica da condição humana, estava suposta a analogia com o prospecto de
perfectibilidade do espírito e da razão. A infância pura é, no trajeto, corroída pelo
ambiente. Assim, há uma estreita vinculação do sentimento da infância consolidada
naquele período e a sensação do progresso intermitente e de confiança na natureza
humana em suas múltipla dimensões, ou seja, nesse cuidado pelo qual se busca
adivinhar o que se tornarão as crianças e a preparar seu futuro baseado na esperança,
na convicção de que as crianças farão melhor que os adultos e realizarão aquilo que
pôde-se apenas entrever.
É neste meio, onde a maioria dos iluministas participavam do consenso de que a
antropologia e a pedagogia eram as principais ciências capazes de propiciar as
necessárias reformas sociais objetivando a felicidade dos homens, que Jean-Jacques
Rousseau escreveu Emílio ou da Educação, em 1762, no qual o autor preocupa-se com
a questão da natureza do processo educativo. Nos capítulos seguintes serão estudados
vida e obra deste autor, onde procurarei examinar como Jean-Jacques Rousseau pensa
a formação pedagógica do homem, enquanto gênero masculino, para criar o homem
novo de acordo com o ideário iluminista.
3 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ROUSSEAU
Porque estudar Jean-Jacques Rousseau? É a pergunta que muitos colegas me
fazem. Eu considero de extrema importância examinar um pensador iluminista, pois,
os fundamentos filosóficos do Iluminismo lançaram as bases para a formação do
pensamento ocidental e para a organização das sociedade contemporâneas. Os valores
socioculturais, as leis, a economia ou a política que dizem respeito à nossa sociedade
atual foram pensadas, com base na filosofia que se fortaleceu a partir daquela época.
Sendo assim, o conteúdo da obra de Rousseau não perdeu nada de sua proximidade
com os problemas da contemporaneidade.
Estudar Rousseau não é meramente descrever um fato histórico do século
XVIII, mas é procurar entendê-lo em todas as suas dimensões para assim poder
compreender as instituições da sociedade contemporânea. E por que não, assim como
Rousseau, procurar melhorá-las?
Além disso, o interesse em estudar Rousseau está na divergência entre os seus
intérpretes. Por que uma obra com mais de duzentos anos causa ainda tanta euforia e
divergência?18 Isso suscitou a curiosidade de estudar seu pensamento.
Também posso dizer que considero Rousseau um brilhante filósofo que
analisou o sistema social em seus diferentes aspectos, mostrando os erros e como a
sociedade poderia consertá-los, além de sua inovadora pedagogia que influenciou a sua
época e a posteridade.
Devido a esses motivos, pretendo analisar a vida e a obra de Rousseau, tomando
como referência os trabalhos dos historiadores CASSIRER19 e STAROBINSKI20,
procurando mostrar a unidade do pensamento desse filósofo e porque ele, apesar do
18
Ver prefácio e posfácio de Peter Gay presentes em CASSIRER, Ernst. A questão JeanJacques Rousseau. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
19
Cassirer, op. cit.
3
STAROBINSKI, J. Jean-Jacques Rousseau : a transparência e o obstáculo. São Paulo :
Companhia das Letras, 1991.
afastamento dos ideais iluministas, pode ser considerado um otimista assim como os
demais participantes da República das Letras.
Julgo importante, ao analisar a obra de um autor, analisar seu contexto histórico
e sua vida, pois acredito que esses influenciam diretamente seu pensamento. Sendo
que já falei a respeito do contexto em que Rousseau viveu no primeiro capítulo, nesse
falarei da vida e obra concomitantemente.
3.1 BIOGRAFIA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU21
Jean-Jacques Rousseau nasceu em 28 de junho de 1712, em Genebra. Sua mãe,
Suzanne Bernard, morreu no parto. Seu pai, Isaac Rousseau, era relojoeiro, de quem
herdou o gosto pela leitura. Aos oito anos Rousseau leu historiadores e moralistas,
particularmente o escritor grego Plutarco (50-125 d. C.). Aos dezesseis anos de idade,
inicia uma vida nômade, muda-se de cidade diversas vezes morando com parentes e
conhecidos. Neste período estuda música.
Em 1741, carregando consigo numerosas cartas de recomendação e um projeto
de inovação da notação musical, vai para a capital da França, Paris. Ali Rousseau
ensinava lições de música. Ao mesmo tempo travou relações com algumas das
personalidades mais influentes do então efervescente mundo cultural parisiense.
Freqüentou madame Dupin, o teatrólogo Mariavaux e o escritor Fontenele. Tornou-se
amigo de Diderot, que já era um escritor conhecido embora ainda não tivesse realizado
a organização da Enciclopédia.
Em 1745, conheceu Thérèse Levasseur, com a qual viveu de 1749 até o fim de
sua vida, chegando a ter cinco filhos. Rousseau os abandonou num orfanato parisiense,
alegando não ser capaz de educá-los por falta de condições econômicas. Sua primeira
ópera, As musas galantes, é desse período.
21
As notas bibiográficas a respeito de Jean-Jacques Rousseau presente nesta monografia
estão apoiadas em foram retiradas de FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem.
São Paulo: FTD, 1989.
Em 1749, o importante filósofo e matemático d’Alembert, colaborador de
Diderot na direção da Enciclopédia, convidou Rousseau a escrever os verbetes sobre
música.
Em 1750, a Academia de Dijon, localizada em Paris, lançou o seguinte tema
para seu concurso: O progresso das ciências e das artes contribui para o
aperfeiçoamento dos costumes? Encorajado por Diderot, Rousseau escreveu o
Discurso sobre as ciências e as artes, obtendo o prêmio com esse escrito. Em 1755,
escreve Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Nesse período escreveu também diversas óperas e polemizou com amigos e com
autores que refutaram seus livros, como Voltaire, que não apreciou o livro e comentou
sarcasticamente que Rousseau propunha a volta à barbárie.
Logo depois de impresso na Holanda, em 1762, Emílio foi condenado pelo
Parlamento de Paris à fogueira, e seu autor à prisão. Em 1766 refugiou-se na Inglaterra
a convite do filósofo e historiador escocês David Hume (1711-1776). Enquanto isso,
no continente, suas obras continuavam sendo hostilizadas pelas autoridades civis e
eclesiásticas, protestantes e católicas. O Contrato Social, também publicado em 1762,
foi condenado em Genebra e Emílio foi queimado em praça pública, em Paris.
Considerado ofensivo à religião católica, foi condenado também pelo arcebispo de
Paris, Cristophe de Beaumont.
Em 1767, voltou à França, instalando-se provisoriamente em Trye. Desejoso de
voltar a Paris, depois de acalmados os ânimos contra ele, escreveu ao ministro
Choiseul, que lhe concedeu autorização para voltar. Instalado em um pequeno
apartamento da rua Platrière, decidiu escrever as Confissões para defender-se de seus
acusadores. Esse texto foi lido por ele mesmo no salão de madame Egmont, mas a
reação do público foi de indiferença.
Dedicando-se sempre à cópia de partituras musicais, escreveu várias obras,
dentre elas os Diálogos, nos quais faz novamente sua defesa, e Devaneios de um
caminhante solitário, texto em prosa poética que contém algumas de suas mais belas
páginas. Sendo esses, juntamente com Confissões, publicados postumamente.
Em Paris, a 2 de julho de 1778 morreu subitamente, em circunstâncias não
inteiramente esclarecidas.
Em 1793, depois da Revolução Francesa, a Convenção, órgão revolucionário
máximo, decidiu a solene transferência dos restos mortais de Rousseau da ilha de
Choupos, onde fora enterrado, para o Panteão de Paris, monumento dedicado aos
heróis da pátria.
3.2 A FASE PESSIMISTA DE ROUSSEAU: DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E
AS ARTES E DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA
DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS
Com o intuito de responder à proposta da Academia de Dijon, Rousseau escreve
o Discurso sobre as ciências e as artes (1750) e, mais tarde, o Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755). No primeiro, o
autor rejeita a idéia de que o Renascimento das artes e das ciências tenha contribuído
para o aperfeiçoamento moral dos homens. Defende a tese da influência perniciosa do
cultivo das artes e das ciências sobre os costumes. No segundo, a desigualdade de
condições que se observa entre os homens na nossa sociedade não é natural ao homem,
mas decorre da própria evolução social, especialmente a partir da instituição da
propriedade privada. Com esses dois escritos, Rousseau se separa dos ideais
iluministas, pois os demais pensadores acreditavam firmemente no progresso das
ciências e das artes para melhorar a vida da humanidade.
Para que isso fique mais claro, a partir de agora falarei, em aspectos gerais –
pois este se refere apenas a uma introdução do pensamento de Rousseau – , a respeito
de sua doutrina me baseando nas análises de CASSIRER, STAROBINSKI, FORTES e
MATOS22.
22
CASSIRER, op. cit. STAROBINSKI, op. cit. FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o
bom selvagem. São Paulo: FTD, 1989. MATOS, O. Rousseau : uma arqueologia da desigualdade. São
Paulo : MG Editores Associados, 1978.
Para Rousseau existe o “homem natural” e o “homem artificial”. O primeiro
não está imerso na sociedade, ao contrário do segundo. Mas o que seria o “homem
natural”? De acordo com FORTES,
É um homem de corpo vigoroso, menos forte do que alguns animais, porém mais ágil do que
outros e, no conjunto, organizado de maneira ‘vantajosa’. Ele está submetido a necessidades
bastante elementares. Disperso ao longo da terra, os homens quase não mantêm entre si
alguma espécie de contato (...) As características do homem distintivas dos animais são a
‘liberdade’ e a ‘perfectibilidade’ (...) o que move esse homem é o ‘amor de si’ que é seu
instinto de autoconcervação e a ‘compaixão’ que é o instinto de conservação mútua da
espécie.23
Dessa forma, Rousseau conclui que com os homens dispersos no planeta e
pensando somente nas suas necessidades elementares, a desigualdade é inexistente no
“estado de natureza”. Mas qual seria a origem da desigualdade entre os homens?
Rousseau mostra que a “liberdade” e a “perfectibilidade”, características naturais do
indivíduo, provocaram a desigualdade. Pois o homem tinha o livre arbítrio de seguir
ou não as leis da natureza e, por algum motivo, foram unindo-se e afeiçoando-se as
técnicas para a sobrevivência, dando origem às comunidades, aldeias e cidades. Neste
contexto surge a propriedade privada, considerada por Rousseau, como a causa da
desigualdade social:
o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes:
“Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de
todos e que a terra não pertence a ninguém!.24
A qual foi mantida pelo “pacto social”, pelo qual pode-se
23
FORTES, op. cit. , p. 53-58.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.
Coleção Os pensadores: Nova cultural.
24
explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao
fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma
felicidade real25.
Assim, com os dois Discursos Rousseau mostra como o progresso das ciências
e das artes serviu apenas para originar e manter a desigualdade entre as pessoas e que
essa desigualdade não é inata no homem, mas sim da sociedade.
No “homem artificial”, que surge com a civilização, se origina o “amorpróprio”. É esta paixão destruidora que responde, em última instância, pelo estado de
verdadeira alienação, de saída de si e da própria órbita que caracterizará a vida na
sociedade “civilizada”, e que leva o civilizado a prezar acima de tudo as honrarias, a
reputação e a opinião alheia. Retomando uma fórmula expressiva do filósofo:
enquanto o selvagem “vive em si mesmo”, o “homem sociável”, sempre fora de si, só
sabe viver baseando-se na opinião dos demais.
Com esses textos Rousseau analisa e critica a sociedade do século XVIII que
era baseada na aparência; denuncia as convenções abusivas que limitavam e
deformavam as relações entre os homens e mostra que o homem é bom por natureza.
Para STAROBINSKI,
Rousseau acredita que a cultura estabelecida nega a natureza. A perda da transparência original
vai de par com a alienação do homem nas coisas materiais. O Discurso sobre a origem da
desigualdade é uma história da civilização como progresso da negação do dado natural,
progresso ao qual corresponde uma degradação da inocência original.26
Devido ao conteúdo dos dois Discursos, Rousseau é considerado por muitos
historiadores como uma figura destoante no chamado mundo da República das Letras.
Ao ideário defendido pela maioria dos pensadores iluministas – a exaltação do
progresso das ciências e das artes e a crença de que a difusão do saber viria pôr fim às
superstições, aos preconceitos, à ignorância, à infelicidade dos povos e tornaria os
25
26
ROUSSEAU, op. cit.
STAROBINSKI, op. cit. , p. 35.
homens melhores, livres e felizes –, Rousseau responderia com um certo pessimismo,
com uma desconfiança que desconcertaria o espírito otimista do século XVIII.
Para NASCIMENTO, o pessimismo de Rousseau deve ser encarado antes como
um diagnóstico profundo da própria condição humana de miséria, degradação,
exploração, que se desenvolveu ao lado do chamado progresso das ciências e das artes.
O que ele critica não é o saber em si, mas a afetação do poder, o uso que se tem feito
da ciência, seu distanciamento total, sua incapacidade de dar conta da situação de
miséria em que vivem os povos27. É isso que aparece com clareza no final do Discurso
sobre as ciências e as artes:
Enquanto o poder estiver sozinho de um lado e, de outro, sozinhas as
luzes e a sabedoria, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os
príncipes mais raramente ainda farão belas coisas e os povos continuarão a
ser objetos corrompidos e infelizes28.
Contudo, pode-se observar que Rousseau deixa transparecer neste trecho uma
pontinha de esperança ao dizer que enquanto a situação não mudar os homens
continuarão no estado de miséria.
3.3 A FASE OTIMISTA DE ROUSSEAU: CONTRATO SOCIAL E EMÍLIO OU DA
EDUCAÇÃO
Não há dúvida de que uma visão como a de
Rousseau sobre a história humana é profundamente
negativa. Pois o que é, afinal, esse longo processo
de evolução senão a gênese de nossos vícios e dos
nossos males e a nossa história, senão um
movimento de queda, tal como no relato bíblico?
Expulso do Paraíso, o homem está condenado a
ser lobo do homem. Todo esse pessimismo
histórico, pelo menos, salva o homem e sua
natureza essencial. O próprio homem enquanto
homem é absolvido ao término de todo esse
27
Ver o prefácio de NASCIMENTO presente em CERIZARA, B. Rousseau : a educação na
infância. São Paulo : Editora scipione, 1990
28
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. Coleção Os pensadores:
Nova Cultural.
laborioso exame crítico. Ao pessimismo histórico
contrapõe-se um otimismo antropológico.
Luiz Roberto Salinas Fortes
Apesar de alguns historiadores acharem que os livros de Rousseau se
contradizem acredito, assim como CASSIRER29, que a obra desse pensador iluminista
é una e coerente. Se nos dois Discursos Rousseau descreve o que “o homem é”, no
Contrato Social e no Emílio ele mostra como “o homem deve ser”, ou seja,
primeiramente ele examina os males individuais e sociais, num segundo momento, ele
mostra como sair dessa situação propiciando o bem para a humanidade. No Contrato
Social, ele pensa a organização política global da sociedade e no Emílio trata das
possibilidades pedagógicas de livrar um indivíduo da corrupção circundante.
Procurando assim melhorar a vida dos homens, Rousseau incorpora o otimismo do
século XVIII.
Rousseau, ao contrário do que Voltaire pensou, jamais, criticando a arte e a
ciência, teve o objetivo de lançar a humanidade de volta ao seu passado natural. Nos
seus primeiros escritos tratava-se de mostrar quão errado e ilusório é o homem
cumular honras e talentos perniciosos desprezando virtudes benéficas. Rousseau
mostrou que a espécie humana em seu estado original era melhor, mais sábia e foi
mais feliz e que se tornou cega, infeliz e má à medida que se afastou dele. Mas este
pensador iluminista tinha consciência de que a natureza humana não caminha para trás
e jamais se pode retornar novamente à época da inocência e da igualdade quando já se
afastou dela uma vez. Assim, Rousseau deixa claro que o retorno à simplicidade e à
felicidade do estado natural está vedado, mas o caminho para a liberdade permanece
aberto, e ele pode ser percorrido. No Contrato Social ele mostra como pode se dar a
construção de uma comunidade humana autêntica e verdadeira sem os males e a
perversão de uma sociedade convencional30.
29
CASSIRER, op. cit.
Ver Confissões, Devaneios de um caminhante solitário e Diálogos nos quais Rousseau
procura explicar a unidade da sua obra e desfazer os mal-entendidos.
30
No Contrato Social, Rousseau escreve “para aquela sociedade que ele
repudiara e descrevera como a causa de toda perversão e de toda infelicidade da
humanidade, o seu código de leis”31. Este livro anuncia e glorifica um absolutismo
totalmente livre da vontade estatal. Toda vontade individual e particular se quebra
diante do poder da “vontade geral”. Assim, uma comunidade autêntica é aquela na
qual a vontade geral, extensão da vontade dos cidadãos livres, é a autoridade soberana.
Para compreender esse escrito, antes é necessário entender o conceito de
liberdade para Rousseau. De acordo com CASSIRER,
ela se refere à ligação a uma lei severa e inviolável que eleva o indivíduo
acima de si mesmo. Não é o abandono desta lei e o despender-se dela, mas a
concordância com ela o que forma o caráter autêntico e verdadeiro da liberdade.32
Então, liberdade para Rousseau não significa libertar e emancipar o indivíduo
no sentido de que ele seja expelido da forma e da ordem da comunidade; ao contrário ,
trata-se de encontrar uma forma comunitária que proteja com toda a força concentrada
da associação estatal a pessoa de cada indivíduo, e o indivíduo, unindo-se aos outros,
obedeça apenas a si mesmo apesar de fazer parte dessa união. Para isso as leis do
Estado devem partir de toda a comunidade e devem ser iguais para todos. Diferente
das leis que oprimiam muitos em razão de poucos na sociedade em que Rousseau
vivia.
Entendido o conceito de liberdade, parte-se para o contrato social. Para
FORTES, segundo os termos desse, cada associado concorda em se colocar sob a
suprema direção da “vontade geral”. Quando o indivíduo concorda em se submeter,
todos os outros pactuantes concordam também em se colocar sob a direção, suprema,
não de uma vontade alheia, mas da vontade coletiva da própria comunidade, daquela
vontade que visa acima de tudo ao interesse coletivo. É somente a autoridade da
comunidade como um todo e as leis que dela emanam que devem ser reconhecidas
31
32
CASSIRER, op. cit. , p.52.
Ibid., p. 55.
como politicamente legítimas. Assim, o soberano deixa de ser identificado com a
figura do monarca e passa a ser a própria comunidade, surgida em função do contrato.
É a “vontade geral” que deverá orientar o comportamento de todos os associados no
cumprimento de suas respectivas e diferenciadas funções sociais e políticas33.
Para poder garantir a boa execução desse contrato, como seria o governo? Segundo
Rousseau,
governo é um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano
para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da
34
manutenção da liberdade, tanto civil quanto política.
Esse corpo intermediário é denominado “suprema administração”; não é um
poder supremo dentro do Estado, mas é um poder encarregado de uma função
hierarquicamente inferior e submetida à autoridade soberana. Os membros do governo,
governantes ou príncipes, são definidos como meros funcionários do soberano. Ao
lado da determinação da soberania como atributo pertencente ao conjunto dos cidadãos
e em estreita vinculação com ela, essa definição de governo ocupa o lugar central em
torno do qual se articula toda a construção do Contrato Social. O governo não se
confunde com o soberano e na instituição do governo não prevalece o modelo do
contrato. Trata-se de uma função subordinada. Os governantes serão instituídos por
determinação do soberano, ou seja, por um ato de livre escolha dos cidadãos reunidos.
Com o Contrato está dada a proposta de reconstrução social. Contudo, não se
deve tomar a idéia de comunidade que decorreria das páginas desse escrito como algo
a ser aplicado em quaisquer circunstâncias de tempo e de lugar. É somente em
condições muito especiais que o ideal resultante da regra da “vontade geral” poderá
passar para a prática. A rigor isto só é possível, segundo FORTES, em pequenas
comunidades e no momento de sua “juventude”, quando ainda não se implantou o
33
34
FORTES, op. cit. , p. 83.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social. Coleção Os pensadores: Nova Cultural.
irreversível processo de corrupção, de que o agigantamento das nações e das cidades é
sintoma inequívoco35.
É neste momento que pode-se entender o “otimismo antropológico” citado por
FORTES na epígrafe acima. O que Rousseau considera salvável nas grandes
sociedades corrompidas é o indivíduo ou alguns indivíduos. Seguindo essa análise,
CASSIRER comenta “Rousseau não se dirige simplesmente aos sujeitos já existentes e
dados da vontade, mas sua primeira intenção reside em “criar” os sujeitos corretos
aos quais pode lançar seu apelo”36. Tal é a tarefa da educação, criar novos homens
para poderem construir um governo como o demonstrado no Contrato Social. Então,
Rousseau escreve Emílio para exemplificar como seria a criação do homem novo.
Toda a educação de Emílio visa a mantê-lo imune aos vícios circundantes. É
bem-sucedida a educação que conseguir fazer o indivíduo em formação acompanhar a
“marcha da natureza”, reprimida pela marcha enlouquecida das educações vigentes.
Além de ser um tratado pedagógico crítico, o Emílio é também um tratado sobre a
bondade natural do homem, ao reconstituir as etapas naturais de formação do
indivíduo humano.
É este ponto do pensamento de Rousseau que quero apreender, ou seja, como
Rousseau pensa a formação pedagógica do homem, enquanto gênero masculino, para
atingir um “ideal-tipo de homem” de acordo com o ideário iluminista? Adiante, no
próximo capítulo, me deterei profundamente na análise do Emílio para responder a
esta questão e para examinar como seu ideal de educação estava imerso no otimismo
iluminista.
35
36
FORTES, op. cit. , p. 94.
CASSIRER, op. cit. , p. 62.
4 EMÍLIO DE ROUSSEAU
É de acordo com o ideal iluminista de homem e de educação que Rousseau
escreve Emílio (1762), uma obra de cunho otimista na qual o autor acredita na
bondade original dos homens e na educação para evitar que o indivíduo seja
corrompido pelos vícios da sociedade, além de ser seu projeto alternativo
consubstanciado em valores morais. Para Rousseau a sociedade de sua época,
principalmente a parisiense, condicionava a humanidade a uma situação de miséria, de
degradação e de exploração, negando a natureza e limitando e deformando as relações
entre os homens. O que Rousseau considera nas grandes sociedades corrompidas é o
indivíduo e sendo assim, a tarefa da educação é criar novos homens para poderem
construir um governo tal como demonstrado no Contrato Social (1762). A partir de
agora, então, analisarei o projeto do homem novo de Rousseau e como seria a esposa
ideal para ele.
Após ter analisado a idéia de cada obra de Rousseau, é imprescindível ressaltar
que a importância da educação no seu pensamento está articulado aos seus temas e
suas idéias opostas. Concordo com CASSIRER e STAROBINSKI que afirmam que o
pensamento teórico de Rousseau é uno e coerente. Eles encontraram em seus escritos
uma concepção ternária do desenvolvimento histórico da humanidade, que
compreende o estado da natureza, a sociedade civil e a república. Para conciliar os
opostos – bondade/maldade; ser/parecer; liberdade/escravidão; natureza/sociedade –,
eles julgam decisiva a importância dada à educação na filosofia de Rousseau, e isso
somente ocorreria com a reconciliação da natureza e da cultura numa sociedade que
supera as injustiças sociais37. Além disso, cumpre entender que a pedagogia, para
Rousseau, faz parte de um pensamento mais abrangente, que, no fundo, é filosófico.
37
Ver: CASSIRER, E. A questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo : Editora UNESP,
1999; STAROBINSKI, J. Jean-Jacques Rousseau : a transparência e o obstáculo. São Paulo :
Companhia das Letras, 1991.
Assim, Emílio, antes de ser um tratado pedagógico, é um estudo filosófico sobre a
bondade natural do homem.
Emílio pode ser considerado um romance didático, no qual o autor imaginou um
aluno, Emílio, cuja educação descreve em cinco livros. No primeiro trata dos meses
iniciais de sua vida até os dois anos; no segundo, estuda o período que vai dos dois até
os dez anos; no terceiro, o período dos dez aos quinze anos; no quarto, dos quinze até
os vinte e cinco anos; no quinto, trata particularmente de Sofia, futura esposa de
Emílio. Os quatro primeiros livros seguem as diferentes fases da vida de Emílio,
sugerindo a intenção de reconstruir a história da evolução do homem da mesma
maneira como tratou da espécie no Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. Ao examinar os períodos de vida do homem – do bebê,
da criança, do adolescente e do adulto – Rousseau reconhece que são diferentes os
interesses
e as capacidades em cada um deles, assim também as finalidades da
Educação devem variar conforme a idade. Rousseau não se refere às técnicas
educativas utilizadas na relação com o educando, mas aos princípios e às atitudes que
fundamentam esta prática e que mantêm estreita ligação entre o que se faz nas
diferentes etapas da vida do homem e o projeto de homem e de sociedade que se quer
formar.
Na obra de Rousseau estão presentes dois tipos de pedagogia, a primeira
voltada à formação do Emílio, a qual está dividida em educação negativa e educação
positiva, e a segunda voltada à formação de Sofia.
4.1 EDUCAÇÃO NEGATIVA
O método pedagógico dos jesuítas, o Ratio Studiorum (ordem dos estudos),
tinha como características principais a cooperação hierárquica das pessoas do colégio
em todos os níveis, o conhecimento da alma infantil e a compreensão das relações que
devem ser estabelecidas entre professor e aluno, o professor como guia, conselheiro ou
treinador. O método previa, como privilégio, a utilização dos sentimentos de amorpróprio ou emulação, isto é, estimulava as competições entre os alunos, instituindo um
sistema de notas, recompensa e distribuição de prêmios ou medalhas, recomendando
também o uso dos exercícios coletivos e a divisão das classes em campos opostos. Os
conteúdos enfocavam primeiro as letras, depois as ciências38.
O método tinha como orientação filosófica a teoria de Aristóteles e Santo
Tomas de Aquino. A filosofia básica era a escolástica teocêntrica, com influência do
tomismo, onde a natureza e o homem estavam subordinados aos princípios do Deus de
origem judaico-cristã. O princípio norteador da Ratio era global, pretendia uma
consciência de homem cristão universal.
O ensino religioso era o centro da formação do método. Para eles o homem não
é só um animal cujo organismo deve-se desenvolver sadiamente, nem a inteligência,
por si só, torna o homem feliz. O ser humano, para os jesuítas, era um ser com destinos
sobrenaturais, daí a educação ser voltada para a alma humana. Sua educação era
voltada mais aos jovens do que aos adultos, pois esses já estavam corrompidos pelos
vícios mundanos. Logo, seu método era fundado na memorização, principalmente das
disciplinas religiosas, para que a criança se tornasse um adulto cristão temente a Deus
e à Igreja católica.
Rousseau é contra o modelo derivado da pedagogia jesuítica que conduzia o
educando a um jugo pelo qual o tempo era preenchido mediante critérios tão rígidos
quanto inúteis. Para o autor, a espontaneidade da criança seria vedada em um modelo
de educação pautado pela vigilância do social sobre o natural. Para Rousseau deve-se
considerar a infância como uma etapa específica na vida do homem, na qual não há
consciência dos atos ou o poder do raciocínio, por isso não se deve ensinar às crianças
conhecimentos científicos nem religiosos, pois ela não seria capaz de discernir essas
idéias. Sendo assim, são desprezíveis os excessos de informações religiosas e morais,
advertindo expressamente que todo ensino de religião antes da idade adulta resulta em
38
BOTO, op. cit.
idolatria e toda lição moral distanciada dos fatos em hipocrisia. Substituir o olhar
infantil pela razão adulta seria perturbar a maturação natural exigida pela ordem do
tempo. Desafiando a pedagogia tradicional, baseada na memorização e nas disciplinas
religiosas, Rousseau apresenta um modelo alternativo.
Rousseau não concorda com a idéia religiosa do pecado original, ele acredita na
bondade original do homem39 e isso fica explícito no seguinte trecho: “tudo é certo em
saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem”40, por isso
ele enfatiza a educação infantil, na qual deve se proteger a bondade da criança dos
males sociais.
Destaca assim, a educação primeiro da força e dos sentidos, valorizando de
início a expressão dos sentimentos e a ação. Para Rousseau, a razão é uma faculdade
que se desenvolve apenas na adolescência, sendo inútil molestar a criança
precocemente com raciocínios que ela não pode entender e com abstrações próprias de
adultos. “Ah! Nada de belos discursos, nada mesmo, nem uma palavra. Deixai que
venha a criança: espantada com o espetáculo, ela não deixará de vos fazer
perguntas”41, ou seja, deve-se deixar fluir a curiosidade da criança para que ela
aprenda as coisas no tempo certo, tempo no qual ela se questionará.
Rousseau deseja que Emílio seja forte, robusto. A educação tem que prezar pela
força física do homem para que ele suporte os obstáculos colocados pela natureza e
aprenda a controlar suas emoções e viver com as privações.
Com Rousseau a criança deixa de ser o objeto da educação para se tornar o seu
sujeito. O mestre, atento à natureza infantil, não tem diante de si a miniatura do adulto,
mas um ser cuja especificidade é preciso conhecer. “A infância tem maneiras de ver,
de pensar e de sentir que lhe são próprias; nada é menos sensato do que querer
39
Rousseau explica na “Profissão de fé do vigário saboiano”, situado no livro IV do Emílio,
porque acredita que Deus é bom e porque o homem é bom por natureza.
40
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. Tradução de Sérgio Milliet. 3a edição.
Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1995. p. 9.
41
ROUSSEAU, op. cit.
substituir essas maneiras pelas nossas”42. Propôs, então, contra o artificialismo das
convenções, a educação natural; e contra a instrução estéril, porque imposta de fora
para dentro, preconizou a educação negativa, pela qual a criança amadurece a partir de
sua própria curiosidade, imaginação e interesse. Para o autor, é a partir do
desenvolvimento concreto da criança, das suas necessidades e dos seus impulsos, dos
seus sentimentos e dos seus pensamentos, que se forma o que ela há de vir a ser,
graças ao auxílio inteligente do mestre.
A tarefa do educador consiste em manter pura e intacta a potencialidade da
criança até o momento propício. Nesse sentido é particularmente importante evitar a
excitação precoce da imaginação, deve-se ensinar a lição da utilidade das coisas, ou
seja, desenvolvendo as faculdades da criança apenas naquilo que possa ser útil.
Até aqui, o processo educativo preconizado por Rousseau é negativo, limitandose aquilo que não deve ser feito. A educação positiva deve iniciar-se quando a criança
adquire consciência de suas relações com os semelhantes, isso se dá, de acordo com o
autor, aproximadamente aos quinze anos, período em que se inicia a educação moral
do Emílio.
Ao final desse subcapítulo, é imperioso enfatizar que Rousseau foi um dos
primeiros a valorizar a infância, descobrindo-a com suas especificidades e defendendo
sua importância na vida do homem. Ariès apresenta em História social da criança e
da família a evolução de um novo sentimento para com a infância que inicia-se no
final do século XV, mas que só se consolida, pelo menos no meio dos estudos
moralistas, com Rousseau. Antes desse autor, os estudiosos não viam a infância como
uma etapa da vida do homem e por isso não se preocupavam com ela43. Rousseau
expõe no Emílio a necessidade de zelar pela criança e educá-la, pois disso depende o
futuro do homem, ou seja, o que a criança virá a ser.
42
43
Ibid.
ARIÈS, op. cit.
4.2 EDUCAÇÃO POSITIVA
Dentre as preocupações de Rousseau, destaca-se o cuidado com a educação
moral, questão atualíssima que ainda aflige pais e educadores. Mais do que focalizar o
conteúdo das virtudes a serem praticadas, Rousseau estava interessado na constituição
da consciência moral do educando, construída na busca da autonomia moral.
Autonomia que, por sua vez, é exigência primeira na sociedade de iguais por ele
preconizada, em que o contrato social depende da participação ativa dos cidadãos e se
funda na solidariedade e na cooperação entre os indivíduos.
Essa educação moral começa quando o aluno completa seus quinze anos e é
quando o preceptor deve entrar nos domínios da teoria da sociedade e da organização
política. Ele aprenderá a conhecer-se a si mesmo e aos outros homens.
O estudo conveniente ao homem é o de suas relações. Enquanto ele só se conhece pelo
seu ser físico, deve estudar-se em suas relações com as coisas: é no que se emprega
sua infância. Quando começa a sentir seu ser moral, deve estudar-se em suas relações
com os homens: é no que se emprega sua vida inteira, a começar pelo ponto a que
chegamos.44
Rousseau critica a educação tradicional que entra no domínio socio-político
antes do aluno estar preparado para isso, pois o aluno quererá exercer as funções de
homem antes de o ser. “A verdadeira marcha da natureza é mais gradual e mais
lenta”45. Uma vantagem da inocência prolongada é de aproveitar a sensibilidade
nascente para jogar no coração do jovem as primeiras sementes da humanidade:
amizade, piedade, generosidade, bondade. Isto se faz apresentado-lhe as misérias do
homem.
O homem da sociedade está todo inteiro na sua máscara. A máscara não é o homem e é preciso
que o verniz não seduza. Em lhes pintado os homens, pintai-os como são, não para que os
46
detestem e sim para que deles se apiedem e não queiram assemelhar-se a eles.
44
ROUSSEAU, op. cit. , p. 237.
Ibid., p. 245.
46
Ibid., p. 267.
45
Segundo SENNETT, um dos modos pelos quais a sociedade urbana do século
XVIII tornou os encontros sociais significativos foi por intermédio de códigos de
credibilidade que funcionavam tanto no teatro quanto na vida cotidiana. Assim, a vida
em sociedade passou a ser dominada pela aparência, os homens eram sociáveis em
bases impessoais47, por isso o termo máscara utilizado por Rousseau. Para esse autor, a
perda da transparência original vai de par com a alienação do homem nas coisas
materiais. Sua crítica, então, era voltada para essa sociedade de aparências. Era
contrário às convenções abusivas que limitavam e deformavam as relações entre os
homens e que corrompiam os costumes morais. As pessoas acabavam dependendo das
outras para conseguirem uma percepção do eu. O indivíduo manipulava sua aparência
aos olhos dos outros, de maneira a conseguir sua aprovação, e assim sentir-se bem
consigo mesmo. Para Rousseau, quanto mais interagiam fora dos rigores da
necessidade, mais se tornaram atores. No meio urbano, com a cultura pública, é onde
ocorre essa perda de si mesmo. Por isso, Rousseau pretende uma educação baseada na
natureza, a qual descreveu no segundo Discurso, pois essa está baseada na
simplicidade e na necessidade. E educado segundo os princípios da natureza, o homem
irá querer somente o necessário para sua sobrevivência e não ambicionará o luxo e a
riqueza que corrompem os verdadeiros laços entre os homens, que são baseados na
amizade, na piedade e na generosidade, pois como dito acima, o homem é
naturalmente bom.
Rousseau reconhece os limites da inteligência humana e reporta-se para a
relação contraditória entre razão e paixões. Para o autor, é possível controlar as
emoções pelo bom uso da racionalidade. A razão, aperfeiçoada pelo sentimento,
possibilitaria a faculdade da compreensão humana. É nisto que se baseia a educação
positiva, em fazer com que o aluno conheça as paixões inerentes ao homem e as que
delas nascem e que consiga controlá-las racionalmente.
47
SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. P. 83.
Pensai em que para guiar um adulto é preciso fazer o contrário de tudo o que se fez para guiar
uma criança. Não hesiteis em instruí-lo acerca dos perigosos mistérios que durante tanto
tempo lhe escondestes com cuidado. Desde que é preciso que os conheça afinal, importa que
os conheça por vós e não por outros ou por si mesmo; como doravante tem de combater, é
preciso, de medo de surpresas, que conheça o inimigo.48
A melhor maneira de conhecer os homens, diz Rousseau, é pela história e não
pela sociedade, onde não fazem outro coisa senão falar, mascarando suas ações. O
mestre ensinará apenas os acontecimentos e o julgamento dos fatos será realizado pelo
próprio aluno, dessa forma é necessário indicar ao educando apenas historiadores que
apresentem fatos sem julgá-los. O autor condena historiadores como Políbio, Salústio
e Tácito que, na sua opinião, fazem raciocínios aprofundados. Estes devem ser
destinados aos velhos, e não aos jovens. Rousseau fala que o problema da história está
em demostrar mais as ações da humanidade. Necessitando falar do homem, o autor
recomenda Plutarco, o qual “tem uma graça inimitável em pintar os grandes homens
em suas pequenas coisas; e é tão feliz na escolha dos traços que uma palavra lhe
basta muitas vezes, um gesto, para caracterizar seu herói”49. Assim, conhecendo a
história dos homens, Emílio “saberá de antemão afastar a ilusão das paixões antes
que nasçam; e vendo que desde sempre cegam os homens, será prevenido da maneira
por que poderão cegá-lo por sua vez, sem jamais a elas se entregar”50.
Aos quinze anos, Emílio não sabe que tem uma alma espiritual e talvez, diz
Rousseau, não seja conveniente informá-lo disso antes dos dezoito anos51. Receberá
então o ensino religioso, sob a forma do deísmo, isto é, de reverência ao Criador da
Natureza. Na sua “Profissão de fé do vigário saboiano”, credo de uma religião natural
e deísta, Rousseau ensina como deve o mestre falar sobre religião ao seu aluno.
48
ROUSSEAU. op. cit., p. 376.
Ibid., p. 272.
50
Ibid., p. 276.
51
Ibid., p.294.
49
Meu filho, conservai vossa alma em condições de desejar sempre, que haja um Deus, e não
duvidareis nunca. Demais, qualquer partido que tomeis, lembrai-vos de que os verdadeiros
deveres da religião são independentes das instituições dos homens; de que um coração justo é
o verdadeiro templo da Divindade; de que, em qualquer país e em qualquer seita, amar a Deus
acima de tudo e ao próximo como a si mesmo é o sumário da lei; de que não há religião que
dispense dos deveres da moral, são somente esses realmente essenciais; de que o culto interior
é o primeiro dos deveres, pois sem a fé nenhuma virtude verdadeira existe.52
O resultado dessa educação é o adulto Emílio, com pouco mais de vinte anos. É
bem formado, bem constituído de espírito e de corpo, forte, sadio, bem disposto, hábil,
robusto, sensato, dotado de razão, de bondade, de humanidade, de bons costumes, de
gosto, amando o belo, fazendo o bem, liberto do império das paixões cruéis, isento do
jugo da opinião, mas submisso à lei da sabedoria, e dócil à voz da amizade. Possui
todos os talentos úteis e vários talentos agradáveis, preocupando-se pouco com as
riquezas, carregando seus recursos nas mãos, não tendo medo de carecer de pão, em
nenhuma circunstância53.
Deve-se observar a importância da educação moral não só pelo caráter
pedagógico, mas sobretudo pelo caráter político e filosófico. Trata-se, como já visto,
da maneira como Emílio toma contato com o social, como se constitui propriamente
num ser moral.
Emílio é um espírito formado pelo contraponto com a Ilustração; educado não
pelas Luzes, mas dirigido para poder adquiri-las. Instrução guiada pela e para a prática
da virtude, nada do que é humano pode estar dela ausente. Por ter como sentimento
inato o princípio da justiça, cuja expressão primeira é a piedade, o jovem Emílio é
suposto, representante do gênero, como ser ativo e inteligente. Assim, capaz de
meditar e refletir, está apto para distinguir entre o erro e a verdade; verdade esta
consubstanciada na realidade e não na mente do indivíduo que julga.
Aqui a pedagogia rousseauniana adquire nitidamente coloração política: sendo
o homem autor e vítima do mal edificado pelo sistema do mundo que ele próprio criou,
corrigir o erro exigiria reformular esses efeitos funestos do progresso da civilização.
52
53
Ibid., p. 367.
Ibid., p. 503.
Alterar a desordem ética da esfera pública apresentar-se-ia como imperativo de
vontade correlato ao desejo de erradicar os males individuais gestados na formação da
personalidade humana. Assim, educação e política são estruturas complementares de
um mesmo objeto, sendo que a gestação do homem novo foi criteriosamente
esquadrinhada para referendar o novo pacto social exposto pelo autor no Contrato
Social.
Rousseau advertiu no Livro Quarto do Emílio que aqueles que quiserem tratar
separadamente a política e a moral nunca entenderão nada de nenhuma das duas. O
autor sabe que é uma ilusão querer ensinar livremente um homem numa sociedade em
que prevalece a desigualdade, e que é uma ilusão esperar transformar a sociedade, se
não se dispõe de homens livres, prontos a se tornarem iguais perante a lei, é preciso,
então, fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Rousseau afirma essa proposição no
Livro Quarto do Emílio, “é preciso estudar a sociedade pelos homens e os homens
pela sociedade”54. Justamente por isso ele escreveu ao mesmo tempo Emílio e
Contrato Social. Dessa forma, Rousseau denuncia a corrupção moral da sociedade, ao
mesmo tempo em que, a partir da educação e da política, propõe um projeto alternativo
consubstanciado em valores morais. Daí a grandeza da obra pedagógica de Rousseau.
Daí também sua capacidade de resistência ao tempo, bem como o reconhecimento
público que valeram o exílio do autor.
4.3 EDUCAÇÃO DE SOFIA
No livro V, chega-se ao último estágio da educação de Emílio, é o momento no
qual ele se prepara para o casamento. Logo, é necessário encontrar uma companheira
para o educando. Então, Rousseau irá descrever como deve ser a educação dessa
mulher, a qual chama de Sofia.
Como dito no primeiro capítulo, os estudiosos iluministas estavam interessados
em apreender sobre a natureza humana, procuravam esclarecer ‘o que é o Homem’,
54
Ibid
disso partiu também a necessidade de saber ‘o que é a Mulher’, pois a espécie humana
e a sociedade são compostas por esses dois sexos. Assim, muitos cientistas e homens
cultos preocuparam-se em entender a especificidade feminina, ou melhor dizendo, a
natureza da mulher, definindo seus lugares e estabelecendo seu papéis. Como exemplo
tem-se Pierre Rousseal, autor de Du système physique et moral de la femme (1775),
primeiro médico iluminista a defender a especificidade da natureza feminina. Seu
sistema consistia em definir o sexo, o corpo e a alma feminina como um todo
homogêneo radicalmente diferente do homem. Para o médico, esta tinha um papel
social e uma função moral bem definidos devido à organização de sua natureza55.
É do ponto de vista do homem filosófico que se institui um duplo discurso do
homem sobre o homem e do homem sobre a mulher. Assim se estabelece para o
homem e para a mulher uma maneira diferente de dizer, de descrever e de definir. O
sujeito desse dizer é, evidentemente, o homem, que pode também tomar-se por objeto
sem abandonar a sua qualidade de sujeito. A mulher não é senão o objeto de um
discurso que a situa no interior dele próprio, mantendo-lhe, simultaneamente, o seu
estatuto de exterioridade. Segundo, CRAMPE-CASNABET, “é no seio desta palavra (e
desta escrita) unilateral que se misturam processos ideológicos, as mais das vezes, senão
sempre, inconscientes de si próprios, e cuja finalidade justificativa e defensiva consiste em
legitimar o que o destino reserva à mulher”56. Sendo assim os estudos sobre a mulher
partem dos homens e não da própria mulher. O homem filósofo do Iluminismo
mantém a inferioridade da mulher e justifica o seu papel numa suposta natureza
feminina57.
55
MARTINS, Ana Paula Vosne. A medicina da mulher: visões do corpo feminino na
constituição da obstetrícia e da ginecologia no século XIX. Tese de Doutorado. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas, 2000. P. 33.
56
GRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”.
In: DUBY, G. ; PERROT, M. (org) História das mulheres. Do renascimento à Idade Moderna. São
Paulo: Afrontamento/EBRADIL, 1991. P. 374.
57
Sobre o discurso masculino, do século XVIII, a respeito da inferioridade da mulher ver:
GRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”. In: DUBY,
G. ; PERROT, M. (org) História das mulheres. Do renascimento à Idade Moderna. São Paulo:
Afrontamento/EBRADIL, 1991. P.369-408.; SCHIEBINGER, Londa. “Mamíferos, primatologia,
Como exemplo, isso fica explícito na análise que SCHIEBINGER faz do termo
escolhido por Lineu para unir os seres humanos aos “seres brutos”: mammalia.
Enquanto que para separá-los usa o termo: “homo sapiens” (homem da sabedoria).
Aqui, a ciência aparece incutida de aspectos sociais, pois esse período estava imerso
numa preocupação, por parte do Estado, de aumentar a taxa de natalidade e de reduzir
a taxa de mortalidade. Para tal objetivo além de um melhor preparo de parteiras e
médicos a amamentação era muito importante. Enquanto os homens preocupavam-se
com o Estado a mulher deveria preocupar-se em ser uma boa mãe. Portanto, “o termo de
Lineu, Mammalia, ajudou a legitimar a reestruturação da sociedade européia, enfatizando
quão natural era para o sexo feminino – humano e não humano – amamentar e criar suas
crias”58.
Como todo escritor é influenciado pela sua época, não podia ser diferente com
Rousseau, o qual participou dessas idéias e deixou contribuições acerca do assunto. A
seguir observa-se como o autor organizou seu argumento sobre a diferença entre
mulher e homem de acordo com as características do corpo, sobre a educação feminina
e finalmente quais seriam as funções matrimoniais e sociais da mulher.
Rousseau inicia seu texto falando sobre a constituição dos sexos:
Sofia deve ser mulher como Emílio é homem, isto é, ter tudo o que convém à constituição de
sua espécie e de seu sexo para ocupar seu lugar na ordem física e moral. Comecemos portanto
por examinar a conformidade de seu sexo com o nosso e as diferenças entre ambos59.
Com esse trecho, observa-se que Rousseau acredita que a função moral do
homem e da mulher advém da constituição do sexo, ou seja, da biologia, da natureza
sexual.
sexologia”. In PORTER, Rroy; TEICH, Mikulás (org) Conhecimento sexual, ciência sexual. São
Paulo: UNESP, 1998.
58
SCHIEBINGER, op. cit. p.239.
59
ROUSSEAU. op. cit., p. 423.
Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta
que o outro resista pouco (...) segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao
homem (...) é a lei da natureza60.
Assim como Rousseau procurou estudar e educar o homem de acordo com a
natureza – a qual explicou no Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens –, faz o mesmo com a mulher, ou seja, analisa-a a partir
do que é de sua natureza. Durante o texto continua discorrendo sobre ambos os sexos,
mostrando que são diferentes por natureza e sendo assim devem exercer papéis
diferentes no casamento e na sociedade.
Porém, Rousseau mostra que “o mais forte, aparentemente senhor, depende na
realidade do mais fraco”61. A mulher e o homem se complementam na sua assimetria.
Compreende-se melhor essa idéia, em seguida, durante a análise da obra.
Segundo Rousseau,
O macho só é macho em certos momentos, a fêmea é fêmea durante a vida toda; tudo leva sem
cessar ao seu sexo, e para bem desempenhar-lhe as funções, precisam uma constituição que se
prenda a ele; precisam cuidados durante a gravidez; precisam repouso quando do parto;
precisam de vida fácil e sedentária para aleitar os filhos; precisam, para os bem educar,
paciência e doçura, um zelo e uma afeição que nada perturbe; só elas servem de ligação entre
eles e os pais, só elas fazem amá-los e lhes dão a confiança de considerá-los seus. Quanta
ternura e cuidado não precisam para manter a união em toda família! E, finalmente, tudo isso
não deve ser virtudes, mas sim gostos, sem o que a espécie humana seria dentro em breve
destruída62.
Com isso, o autor denota e comprova que é próprio, é da essência, é da natureza
da mulher gerar e cuidar dos filhos e manter a união da família. Seguindo esse
pensamento, o autor fala que a mulher não poderia jamais ser uma guerreira, ou seja,
não poderia desempenhar a funções do homem, pois “ainda que haja entre os períodos
de gravidez intervalos tão longos, mudará a mulher bruscamente...? (...) Passará ela
60
Ibid., p. 424.
Ibid., p. 426.
62
Ibid., p. 428.
61
subitamente da sombra da cerca e dos trabalhos domésticos às injúrias do ar, às
tarefas, às fadigas, aos perigos da guerra?”63.
Após ter demonstrado que o homem e a mulher não são constituídos da mesma
maneira, Rousseau afirma, por isso, que não devem receber a mesma educação. Então,
tendo exibido a constituição do sexo feminino, o autor examina como deve ser a
educação da esposa do homem natural.
Seguindo as indicações da natureza, Rousseau fala que o homem não deve fazer
de sua companheira uma criada, que ela não deve ser educada na ignorância de tudo e
adstrita unicamente às tarefas do lar.
Não, sem dúvida, assim não o mandou a natureza, que dá às mulheres um espírito tão
agradável e tão versátil; ao contrário, ela quer que elas pensem, julguem, amem, conheçam,
cultivem seu espírito como seu rosto; são as armas que lhes dá para suprir a força de que
carecem e para dirigir a nossa. Elas devem apreender muitas coisas, mas as que lhes convém
saber64.
Dessa forma, Rousseau expõe que a mulher deve ser instruída até um certo
ponto, até onde possa cuidar dos filhos, do marido e do lar, pois, como dito acima, isso
é de sua natureza. O que fica claro no seguinte trecho:
Toda educação das mulheres deve ser relativa ao homem. Serem úteis, serem agradáveis a eles
e honradas, educá-los jovens, cuidar deles grandes, aconselhá-los, consolá-los, torna-lhes a
vida mais agradável e doce; eis os deveres das mulheres em todos os tempos e o que lhes
65
devemos ensinar já na sua infância .
Um ponto interessante da obra, é que Rousseau criticou tanto, em vários livros,
a sociedade baseada nas aparências e procurou educar Emílio fazendo que ele
acreditasse e fosse o que realmente era e não o que os outros gostariam que ele fosse.
Procurou educá-lo sendo firme em suas atitudes e opiniões para que não fosse
corrompido pelos vícios da sociedade. Mas quando se trata da educação de Sofia,
63
Id
Ibid., p. 432.
65
Ibid., p. 433.
64
aborda isso de uma maneira diferente. O autor mostra que a mulher não deve ser
apenas boa, mas deve parecer como tal frente aos demais. Observe:
o homem, agindo bem, não depende senão de si e pode desafiar o juízo público; mas a mulher,
agindo bem, só cumpre metade de sua tarefa, e o que pensam dela lhe importa tanto quanto o
que é efetivamente. Segue-se daí que o sistema de educação deve ser, a esse respeito, contrário
ao do nosso: a opinião é o túmulo da virtude para os homens, o trono entre as mulheres.66
Pelo próprio fato de se achar a conduta da mulher submetida à opinião pública,
sua crença submete-se à autoridade. Para Rousseau, toda jovem deve ter a religião de
sua mãe, e toda mulher a de seu marido. Pois para ele, a mulher não sabe unir a
sabedoria à devoção.
Assim como a educação do menino Emílio é baseado na experiência e na
utilidade, a educação da menina Sofia também tem um caráter utilitário-imediatista.
“Exclui de seu sexo, como do nosso (...) todos os estudos cuja utilidade não é da idade
e que a criança não pode prever”67. Não se deve repassar à menina ensinamentos que
não consegue entender sua utilidade. Também é necessário sempre impor tarefas às
meninas e não deixá-las no ócio, pois a ociosidade é o defeito mais perigoso e o mais
difícil de curar.
Após ter discorrido sobre a constituição dos sexos e qual a educação mais
apropriada para a menina Sofia, Rousseau aponta como será desse modo a função de
cada um dentro da sociedade conjugal. E o elemento que talvez distinga melhor a
diferença de papéis é o modo como a razão se apresenta em cada um deles. Na mulher,
ela é prática, no homem, ela determina os fins que devem ser buscados. Dessa forma, o
homem estabelece os fins, o que é melhor, e a mulher executa as decisões do marido.
Disso resulta, segundo Rousseau, uma relação social dos sexos admirável. Um
depende do outro e juntos formam a harmonia68. Contudo, essa dependência não é
igual: enquanto os homens poderiam subsistir sem as mulheres, as mesmas não
66
Id
Ibid., p. 437.
68
Ibid., p. 448.
67
conseguiriam sem os homens69. Isso, de acordo com o autor, não é instituído, mas é
natural. É a partir daí que a educação de Sofia deve ser desenvolvida. Ela deve ser
instruída desde pequena sobre sua condição. Ela não é treinada apenas para se dedicar
ao marido, aos filhos e ao lar, mas também para que faça isso com prazer.
Assim como o homem, a mulher também tem a idade da consciência, de quando
começa a julgar as coisas por si mesma e, então, é chegada a hora de mudar o plano da
educação. Sendo que,
a razão que leva o homem ao conhecimento de seus deveres não é muito complexa; a razão
que leva a mulher ao conhecimento dos dela é mais simples ainda. A obediência e a fidelidade
que deve a seu marido, a ternura e os cuidados que deve a seus filhos, são conseqüências tão
naturais e tão sensíveis de sua condição que ela não pode, sem má fé, recusar seu
consentimento ao sentimento interior que a guia, nem desconhecer o dever na inclinação que
não se acha ainda alterada.
A procura das verdades abstratas e especulativas, dos princípios, dos axiomas
nas ciências, tudo o que tende a generalizar as idéias não é da competência das
mulheres, seus estudos devem todos voltar-se à prática; cabe a elas fazerem a
aplicação dos princípios que o homem encontrou, e cabe a elas
fazerem as
observações que levam o homem ao estabelecimento de tais princípios. Todas as
reflexões das mulheres no que não dizem imediatamente respeito aos seus deveres,
devem tender para o estudo do homem. As ciências exatas cabem aos homens, cabe a
quem tem mais força70.
Nessa idade, as mães devem ser companheiras de suas filhas, dando um
discernimento reto e uma alma honesta e não deve procurar esconder o que um olho
casto pode ver. “O baile, os festins, os jogos, o teatro, tudo o que, mal visto, faz o
encanto de uma juventude imprudente, pode ser oferecido sem risco a olhos sadios.
Quanto mais bem virem esses ruidosos prazeres mais cedo se enojarão deles”71.
69
Ibid., p. 432.
Ibid., p.463.
71
Ibid., p.464.
70
Rousseau prefere que as mulheres sejam educadas em casa, junto com a família,
a serem educadas num convento. Pois, para gostar da vida tranqüila e doméstica é
preciso conhecê-la; é preciso ter sentido a doçura do lar desde a infância. É somente na
casa paterna que se adquire o gosto por sua própria casa, e toda mulher que não tenha
sido educada por sua mãe não gostará de educar seus filhos72.
Eis a educação que Sofia teve, seguindo as características de seu sexo. Observese como é Sofia na idade de casamento: é bem nascida, tem um temperamento bom,
tem o coração sensível, tem uma fisionomia que promete uma alma e que não mente,
ninguém tem qualidades mais bem ajustadas para criar um caráter feliz. Sofia não é
bela; “mas perto dela os homens esquecem as mulheres belas e estas sentem-se
descontentes consigo mesmas”. Não gosta do luxuoso, prefere ver a simplicidade unirse à elegância. Sofia tem talentos naturais, canta e dança. O que Sofia sabe mais a
fundo, o que lhe fizeram aprender com mais cuidado, são os trabalhos de seu sexo,
como cortar e costurar seus vestidos, e as tarefas do lar, cozinha e copa, sabe os preços
dos mantimentos, conhece-lhes as qualidades, sabe muito bem fazer suas contas, servir
de mordomo para sua mãe. Feita para ser um dia mãe de família ela própria,
governando a casa paterna aprende a governar a dela, é capaz de atender às funções
dos criados e sempre o faz de bom grado. Tem a natureza amável de seu sexo, é feita
para ceder ao homem e até para suportar a injustiça dele. Sofia tem religião, a qual é
baseada na razão, e simples, poucos dogmas e com menos práticas de devoção, ou
melhor, não conhecendo como prática essencial senão a moral, ela dedica sua vida a
servir Deus fazendo o bem. Sofia ama a virtude, pois essa faz a glória da mulher. Tem
pouca prática na sociedade e mantém-se recatada quando está em público.73
Esta é Sofia, “não tem senão um bom natural numa alma comum: tudo o que
tem de mais do que as outras é efeito da educação”74.
72
Ibid., p. 465.
Ibid., p. 471-478.
74
Ibid., p. 487.
73
Emílio e Sofia tiveram uma educação guiada pelos princípios da natureza.
Então, ambos estão preparados para terem uma vida em comum, onde cada um realiza
sua parte para alcançar os objetivos comuns. A complementação é mútua, muito
embora tenham papéis distintos, e é dessa distinção de papéis que surge a harmonia
necessária.
Com sua obra, Rousseau propõe uma nova moralidade, sendo o homem mais
forte, ágil e inteligente, deveria voltar-se para o mundo da política e dos negócios,
enquanto a mulher, seu complemento natural, por ser mais fraca e emocional, deveria
devotar-se ao espaço regenerador da alma masculina, o lar.
4.4 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA EDUCAÇÃO MASCULINA E DA
EDUCAÇÃO FEMININA PRECONIZADAS POR ROUSSEAU
A educação dada a Emílio não servia para Sofia, pois as características de seu
sexo determinam que ela seja esposa e mãe, logo não precisava ser muito instruída,
pois sua vida se restringia ao lar. Além disso, a mulher não possui muita habilidade
para fazer argumentações e é fraca, segundo Rousseau.
No Livro IV, do qual Sofia está ausente, se desenvolve a longa “Profissão de fé
do vigário saboiano” que, supostamente, eleva a alma de Emílio ao conhecimento
intuitivo, sensível, do autor supremo da natureza, Deus justo e bom, garantia da ordem
do mundo e das virtudes humanas. Sofia não tem direito a este discurso racional; terá
de contentar-se, no Livro V, com um catecismo elementar, composto de perguntas
feitas pela criada e de respostas reduzidas a algumas palavras. Este catecismo ensina
rudimentos certamente muitíssimo úteis à vida: todos crescem, se reproduzem,
envelhecem e morrem. Sofia não pode compreender religião, por isso deve seguir a
religião de seu marido.
Sofia não tem direito ao discurso político do preceptor que, antes de a casar,
inicia Emílio, futuro chefe de família, na vida civil: O que é governar? O que é um
contrato? O que é ser cidadão? A cidadania feminina não passa de sombra não ativa do
marido-chefe.
Assim, segundo CRAMPE-CASNABET, “o discurso de Rousseau é de uma
coerência a toda prova: a mulher não é igual ao homem, ela não recebe a mesma
educação que ele, ela não tem direito ao papel nem ao nome de cidadão, a não ser por
metáfora”75.
Devido a essas constatações da obra Emílio, muitos estudiosos criticaram a
postura de Rousseau quanto à educação feminina, chamando-o de tradicional, de
reacionário.
Mary Wollstonecraft, em A Vindication of the Rights of Womem (1792),
defendia a igualdade entre os sexos perante a lei e a educação e elogiou determinadas
teorias de Rousseau relativas à educação pública, à curiosidade natural e às aplicações
práticas e sua proposta de educação masculina. Porém, criticou profundamente as
teorias sobre a educação feminina, pois a autora defendia que a educação de homens e
mulheres deveria ser conjunta e igual. Wollstonecraft não estava sozinha, obras como
A Declation of the Rights of Womam de Olympe Gouges, Memoirs on Public
Instruction de Condorcet, Letter on Education (1790) de Catherine Graham Maculay
defendiam a mesma educação para homens e mulheres76.
Segundo Rousseau a educação da mulher é relativa ao homem, pois ela é criada
para servi-lo. Wollstonecraft discorda desse pensamento, pois dessa forma a mulher
não está sendo educada para ser uma boa esposa e uma mãe sensata, mas para ser uma
serva agradável ao homem. Para a mulher ser uma companheira verdadeiramente,
deveria ser educada como o homem, assim também poderia educar melhor os filhos.
Não é possível negar que Rousseau atribuiu às mulheres uma vida
caracterizadamente serviu aos homens, mesmo levando em conta os costumes e
75
GRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”.
In: DUBY, G. ; PERROT, M. (org) História das mulheres. Do renascimento à Idade Moderna. São
Paulo: Afrontamento/EBRADIL, 1991. P. 398.
76
WALLACE, Heather “Sophie: Woman’s Education To Rousseau and Wollstonecraft”. In:
http://www.georgetown.edu/faculty/irvinem/english016/franken/sophie.txt
expectativas de sua época, mesmo porque, como se viu acima Wollstonecraft era
contemporânea de Rousseau e defendia educação igual para ambos os sexos. Mesmo
quando apresenta a espécie feminina como possuidora de capacidade de julgar e de
compreensão moral, mesmo aí, a mulher parece estar sujeita a uma proibição ou
autorização do homem no tocante ao seu direito de ação.
O que é interessante, se Rousseau julga ser a mulher uma criatura fraca e dotada
de uma razão prática que não permite que ela possa argumentar, decidir por uma
religião, discernir o que é melhor sem o auxilio do homem. Então, por que ele acredita
que a inteligência na mulher é precoce? Por que quanto mais Emílio e Sofia vão se
aproximando, aumentando a intimidade e afeição, é ela que desponta como o
personagem mais perspectivo, moral e emocionalmente mais equilibrado, restando a
Emílio aprender com ela? Dos dois, é o homem que perde o controle dos sentimentos,
ameaçando a destruição da relação que mal se iniciou e é ela que aparece como
alguém absolutamente equilibrada e com autocontrole sobre as suas emoções e
desejos.
Mais uma questão que faço, e por que numa época em que liberdade e
igualdade eram palavras de ordem, Rousseau defendia a desigualdade entre os sexos?
Essas questões aguçaram a curiosidade de muitos estudiosos77. A título de
discussões posteriores, pois este não é o objetivo do trabalho, irei expor, sem maiores
aprofundamentos, duas teorias que considero muito interessantes e coerentes a respeito
do assunto.
Primeiro, GRAMPE-CASNABET expõe que Rousseau era um homem que
escrevia para homens sobre a mulher. “Comecemos, portanto,
por examinar as
semelhanças e as diferenças entre o seu sexo e o nosso”, escreve no início do Livro V.
Ou seja, era um homem que procurava legitimar o papel conjugal e social da mulher,
sob influências ideológicas de seu tempo, a qual procurava explicar a espécie humana
77
Sobre os críticos de Rousseau que procuraram explicar porque o desejo da submissão da
mulher ver: WALLACE, Heather “ Sophie: Woman’s Education According to Rousseau and
Wollstonecraft”. In: http://www.georgetown.edu/faculty/irvinem/english016/franken/sophie.txt
comparando-a com espécies animais. Como conseqüência disso, médicos e estudiosos
de diversas áreas explicavam que sendo as mulheres, assim como as demais fêmeas do
reino animal, capazes de gerar e amamentar os filhos nada mais natural do que a
mulher se restringir ao lar para criá-los78.
Segundo, Victor WEXLER diz que Rousseau vê a mulher como uma ameaça ao
homem, pois ela demonstra ser mais forte ao poder controlar seus impulsos
emocionais e sexuais. Por isso Rousseau restringe a educação da mulher e defende que
ela deva cuidar somente dos filhos, do marido e do lar79.
Tendo como referência essas teorias, constata-se que Rousseau inova
radicalmente ao tratar da educação de Emílio, rompendo com a pedagogia tradicional e
propondo um homem novo diferente de todos da sua época. Contudo, propõe uma
educação tradicional às mulheres enfatizando a necessidade da mulher adquirir, de
forma prazerosa, talentos para cuidar da família e do lar.
78
GRAMPE-CASNABET, Michele. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”.
In: DUBY, G. ; PERROT, M. (org) História das mulheres. Do renascimento à Idade Moderna. São
Paulo: Afrontamento/EBRADIL, 1991. P. 374.
79
VICTOR G. WEXLER. . “Made for Man’s Delight’: Rousseau as Antifeminist.
AMERICAN HISTORICAL REVIEW.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O leitor do ‘Emílio’ que se pretendesse ao estudo desta obra, desconhecendo a
unidade do pensamento de Rousseau, certamente chegaria a concluir que o ideal
educacional proposto por ele, fosse um ideal que pretendesse preservar o homem
contra a sociedade; uma formação contra a cidadania”80. Essa citação de OLIVEIRA
denota como Rousseau pode ser mal interpretado, como o foi tanto por seus
contemporâneos como por leitores posteriores a ele. Muitos críticos de Rousseau o
acusaram de se contradizer nas suas teorias e de ser um pessimista frente aos desejos
iluministas por relatar o estado de corrupção moral em que a humanidade chegou.
Um dos objetivos desse trabalho era demonstrar, assim como afirmou
CASSIRER81, que Rousseau tinha um pensamento uno e coerente. Isto ficou
comprovado no segundo capítulo onde, analisando quatro obras fundamentais do autor
iluminista – os dois Discursos, Contrato Social e Emílio, demonstro que primeiro
Rousseau exibe “o que é o homem e a sociedade” e propõe um “novo homem e uma
nova sociedade”. No terceiro capítulo, com um exame mais detalhado de Emílio,
observa-se que Rousseau tem por objetivo a construção do novo homem capaz de
discernir os valores morais, dotado de uma vontade autônoma e de consciência
racional e devido a tudo isto, um homem feliz, demonstrando Rousseau, portanto,
unidade de pensamento ao percorrer as diferentes etapas da educação de Emílio sem se
desviar de seu objetivo iluminista.
Rousseau cuidou muito da educação do homem, pois é nela que está o poder da
criação de uma nova sociedade. Essa atitude ética tão evidente no Emílio não envolve
nenhuma rejeição da sociedade em si, ou do exercício da cidadania, como Voltaire
tinha dito ao tomar conhecimento da obra de Rousseau. Ao contrário, toda a sua
proposta pedagógica visa sobretudo a uma reforma da sociedade e a uma real
80
OLIVEIRA, A. E. Jean-Jacques Rousseau : pedagogia da Liberdade. João Pessoa : Editora
Universitária/UFPb, 1977. P. 89.
81
CASSIRER, E. A questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo : Editora UNESP, 1999.
participação do homem na vida social. A sua pedagogia está muito ligada à política. A
formação humana que Rousseau propõe é a base para o perfeito exercício da
cidadania. O homem novo, exemplificado pelo personagem Emílio, poderá construir
uma sociedade melhor, mais feliz, fundada num pacto entre os homens descrito no
Contrato Social. Assim, essas duas obras se complementam e mostram o otimismo
iluminista do autor de que um dia a sociedade será justa e melhor.
Rousseau neste aspecto, é de uma atualidade muito grande ao dar primazia à
formação humana sem, no entanto, negar o engajamento social do homem.
O exame da fonte e da bibliografia secundária, mostra que Rousseau inovou em
vários temas da educação, entre outros, a descoberta da infância – pois antes desse
autor, a criança era vista como miniatura do adulto. Rousseau, no Emílio, distingue a
infância como uma etapa da vida do homem a qual tem suas especificidades e da qual
deve-se cuidar, pois a criança será o adulto de amanhã. Além disso, o autor acreditava
que o homem nasce bom, sendo assim era necessário zelar pela criança para que não se
perdesse essa bondade original frente a corrupção moral da sociedade –; a necessidade
dos pais cuidarem dos filhos – Rousseau mostra a necessidade da amamentação e dos
cuidados paternos na formação do jovem, tanto que Sofia é educada para ser uma boa
mãe que educará seus filhos –; a preocupação com a educação moral – antes de
Rousseau eram poucos os teóricos que se preocupavam com o ensinamento da moral,
os educadores estavam mais preocupados com a aprendizagem das ciências e se
pregavam a moralidade era de uma forma a inculcar princípios, sem se preocupar em
formar uma consciência que discernisse entre o bem e o mal. Devido a essas inovações
na área educacional, consideradas radicais por alguns estudiosos, Rousseau foi
profundamente admirado, sendo que muitos dos valores socioculturais e das leis que
dizem respeito à infância e à família nas sociedades ocidentais e contemporâneas
foram pensadas com base nesses temas.
Contudo, no que se refere à educação feminina, Rousseau foi criticado e
considerado reacionário. Durante a pesquisa, observa-se que o autor propõe uma
educação feminina subordinada a educação masculina, formando, por conseqüência,
uma mulher submissa ao homem. O que é interessante, pois numa época em que
liberdade e igualdade eram palavras de ordem, Rousseau é totalmente contra a
igualdade entre os sexos. Além de que, a mulher deveria servir ao homem e obedecêlo, restringindo sua liberdade. Assim, os ideais iluministas na obra de Rousseau
voltam-se somente aos homens. Algum leitor pode contestar minha observação devido
à época em que a obra foi escrita, meados do século XVIII, afirmando que nesse
período a mulher era submissa e não existiam os ideais feministas, que foram
propagados somente na segunda metade do século XIX. Entretanto, examinando a
bibliografia referente à educação feminina desse período nota-se que muitos teóricos já
defendiam a educação das mulheres nos mesmos moldes da pedagogia masculina,
além dos salões, lugares onde tanto homens como mulheres, muito bem informadas e
cultas, debatiam em pé de igualdade as idéias em voga.
Dessa breve consideração a respeito de Emílio, observa-se que o autor tratou de
assuntos de alcance universal, que ainda hoje não perderam sua força e urgência. Por
isso a atualidade de sua obra e a importância de estudar o pensamento desse notável
filósofo iluminista, Jean-Jacques Rousseau.
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Disponível
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<:http://www.georgetown.edu/faculty/irvinem/english016/franken/sophie.txt> Acesso
em: 30 mar 2003.

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