Cap. XIV. Método Científico na Idade Média

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Cap. XIV. Método Científico na Idade Média
Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2010
Capítulo XIV
MÉTODO CIENTÍFICO NA IDADE MÉDIA
1. Grosseteste, Método da Resolução e Composição, e Falseamento
A discussão sobre método científico na Idade Média iniciou-se com a obra de Robert
Grosseteste (1168-1253), que comentou os Analíticos Posteriores (ver seção IV.2) e estendeu
o método aristotélico47. Grosseteste trabalhava em Oxford, e em seu comentário dos
Analíticos Posteriores nomeou o método aristotélico de método da resolução e composição.
Provavelmente retirou estes termos de Boécio, mas Galeno já os utilizara em seu Tegni.
A “resolução” consiste no estágio indutivo (lembremos da Fig. IV.1) que parte das
observações e formula princípios explicativos, ao passo que a “composição” é o estágio
dedutivo que combina os princípios para reconstituir os fenômenos originais. Em seu relato,
Grosseteste iniciou com a composição, que parte do mais universal e simples – o gênero – e
vai se desdobrando, através da adição de atributos diferenciadores, para espécies cada vez
mais particulares. A resolução é o movimento inverso, que parte do mais particular e
composto e ascende para o gênero mais simples e universal.
O método da resolução e da composição, na ciência, é semelhante à distinção entre
“análise” e “síntese” na matemática (ver seção anterior). No entanto, há uma diferença
importante, pois tanto a análise quanto a síntese envolvem inferências dedutivas, ao passo que
a resolução consiste de uma inferência “ampliativa”, envolvendo indução enumerativa e
abdução, e pode levar ao erro.
Grosseteste salientou que os procedimentos de resolução e composição não bastam
para se encontrarem as causas na ciência natural, pois as hipóteses obtidas por este método
aristotélico são apenas “causas possíveis”. Um mesmo efeito pode ser obtido por diferentes
causas, de maneira que em geral seria impossível alcançar uma definição completa da causa
de um efeito. Nas ciências naturais (ao contrário da situação na matemática), para distinguir
uma vera causa de outras causas possíveis, é preciso adicionar um procedimento de
verificação ou falseamento experimental. Uma explicação científica em geral consegue ir
além dos fatos a partir da qual foi construída, por indução. “Pois quando o argumento procede
pela composição de princípios para conclusões, [...] ele pode proceder ao infinito pela adição
do extremo menor sob o termo médio” (citado em CROMBIE, p. 83). Para eliminar as falsas
causas seria necessário fazer experimentos.
A noção de falseamento (ou falsificação) – de que uma teoria deve ser eliminada
quando suas previsões não correspondem aos fatos – já fora mencionada por Aristóteles e
Galeno, mas Grosseteste teve o mérito de salientar sua importância e de propor um
procedimento experimental sistemático para implementar tal método de falseamento.
O método de falseamento utiliza uma das formas do “silogismo hipotético”,
desenvolvido pelo estóico Crisipo (em torno de 230 a.C.) e que se distinguia do silogismo
categórico estudado por Aristóteles. Um exemplo de silogismo hipotético é o modus ponens;
outro é o modus tollens:
47
A obra de referência sobre Grosseteste é CROMBIE (1953), op. cit. (nota 17), pp. 44-232. Seguimos também
LOSEE (1979), op. cit. (nota 17), cap. 5, e OLDROYD (1986), op. cit. (nota 16), pp. 26-39.
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MODUS PONENS
MODUS TOLLENS
Se H, então C
H
C
Se H, então C
não-C
não-H
O modus tollens, portanto, parte da proposição condicional (chamada “hipotética”) de que se
H ocorrer, então C também ocorrerá. Na terminologia da área de filosofia da ciência, é “H”
que chamaremos de uma “hipótese” a ser testada. Acontece que C não ocorre (é o que diz a
segunda linha do silogismo). Qual é a nossa conclusão? Claramente, que H não ocorre.
Diremos pois que a hipótese H foi falseada.
Grosseteste forneceu o seguinte exemplo para o método de falseamento, em sua
discussão sobre a origem do calor proveniente do Sol. Por resolução, concluiu que poderia
haver três modos de geração de calor: por condução de um corpo quente (como quando uma
panela está no fogo e seu cabo esquenta), por movimento (um corpo atritando em outro gera
calor) e por uma concentração de raios (como faz uma lente com a luz solar). Ele defendia
que o Sol gera calor por concentração dos raios; assim, eliminou as outras possibilidades
usando um argumento de tipo modus tollens:
Se o Sol gera calor por condução, então a matéria celeste se aquece.
Ora, a matéria celeste não se aquece
O Sol não gera calor por condução.
O falseamento é uma parte importante do método científico, e o seu uso sistemático
constitui o chamado “método hipotético-dedutivo”, que se distingue e complementa o método
indutivo. Filósofos da ciência posteriores, como Duhem, salientariam que a proposição
condicional envolvida no modus tollens é em geral bem mais complexa do que um simples
“se H, então C”. Em geral, H representa não apenas uma única hipótese, mas uma série de
leis, condições particulares e hipóteses de diversos tipos (ver seção V.3). O problema que isso
levanta é que o falseamento mostra que o conjunto H é falso, mas por si só não dá pistas sobre
qual das proposições envolvidas (leis, condições, hipóteses) é a falsa.
2. Roger Bacon e o Papel dos Experimentos
Roger Bacon (1214-1292), aluno de Grosseteste, levou adiante o método de resolução
e composição de seu mestre, salientando a importância da experimentação para aumentar o
número de fatos conhecidos a respeito do mundo. Elogiava, assim, experimentos como os de
Petrus Peregrinus, que cortara ao meio uma agulha magnética, que contém dois pólos –
“norte” e “sul” –, e obteve dois novos imãs, cada qual com os dois pólos. Elogiava também os
resultados experimentais da alquimia, estes porém de valor duvidoso. Além da
experimentação, valorizava também a matemática.
Em seu Opus Maius, Bacon salientou que a ciência experimental tem “três grandes
prerrogativas” com relação às outras ciências. Primeiro, ela investiga e confirma as
conclusões obtidas por outras disciplinas, como a óptica, através de raciocínios dedutivos. Em
segundo lugar, ela permite adicionar conhecimento novo, não obtenível por dedução, a essas
disciplinas. A terceira prerrogativa é a possibilidade de criar novos campos do conhecimento,
investigando as maravilhas da natureza e as previsões do futuro, como na astrologia.48
48
Sobre Roger Bacon, ver CROMBIE (1953), op. cit. (nota 17), pp. 139-62, e de forma mais detalhada: HACKETT,
J. (org.) (1997), Roger Bacon and the Sciences, Brill, Leiden.
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A ênfase de Roger Bacon nos experimentos reflete o bom desenvolvimento das
técnicas em sua época, discutido na seção V.2. Ele chegou a prever o uso de motores em
navios, carros e até aviões.
Um experimento se distingue de uma observação pelo fato de no primeiro haver uma
“intervenção” no mundo, ao passo que a observação se dá sem tal intervenção. Há, porém,
casos intermediários, como quando escolhemos metodicamente quando e onde uma série de
observações (por exemplo, astronômicas) se dará.
3. Método Indutivo na Idade Média
A exploração dos métodos envolvidos na indução enumerativa49, iniciada por
Grosseteste, foi levada adiante pelo monge franciscano John Duns Scotus (c. 1265-1308), que
trabalhou em Oxford e em Paris. Ele descreveu claramente o que posteriormente, com John
Stuart Mill, viria a ser chamado o “método indutivo da concordância”. Isso pode ser
exemplificado por uma tabela em que diferentes circunstâncias antecedentes levam a
diferentes efeitos observados:
Caso
1
2
3
4
Circunstâncias
ABCD
ACE
ABEF
ADF
Efeito
e
e
e
e
Toda vez que a circunstância A ocorre, o efeito e se segue, em concordância. Assim, A pode
ser a causa de e. Naturalmente, não pode haver certeza de que A é causa de e, apenas a partir
de uma “correlação” (Duns Scotus tinha noção disso). Por exemplo, poderia ser que e fosse
causado por duas circunstâncias diferentes, C ou F.
Guilherme de Ockham (c. 1300-49), de Oxford, adicionou a isso o “método indutivo
da diferença”, exemplificado abaixo:
Caso
1
2
Circunstâncias
ABC
AB
Efeito
e
–
Quando a circunstância C é retirada, mantendo-se todos os outros fatores iguais, e o efeito e é
observado, então C pode ser a causa de e. Este método pode ser visto como mais forte do que
o anterior.
Como exemplo do uso conjunto dos métodos da concordância e da diferença,
CROMBIE (pp. 153-4) cita a opinião de Roger Bacon de que o cristalino (a lente em nosso
olho) seria a única parte sensível do olho: “Pois, se ela for lesionada, mesmo que as outras
partes sejam mantidas intactas, a visão é destruída; e se ela não sofrer danos e a lesão ocorrer
em outras partes, desde que se mantenha sua qualidade transparente, a visão não é destruída.”
49
LOSEE (1979), op. cit. (nota 17), pp. 44-6. CROMBIE (1953), op. cit. (nota 17), pp. 167-77.
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4. Simplicidade e a Navalha de Ockham
Ockham foi também um importante “nominalista”, ao lado de Pedro Abelardo (10791142). O problema dos universais foi discutido por Porfírio e Boécio, no séc. VI, e é a questão
de se as propriedades das coisas particulares (como azul, triangular, justo) ou seu gênero
(como homem, mamífero, animal) têm existência independente das coisas (como defendiam
os realistas de universais), ou são apenas idéias em nossa mente (conceitualismo) ou meros
nomes (nominalismo). Os nominalistas estavam em minoria na Idade Média. A tradição
nominalista seria retomada por John Locke, no séc. XVII.
Grosseteste e outros pensadores medievais defendiam o princípio de que a natureza
sempre escolhe o caminho mais simples. Ockham, por outro lado, achava que esse princípio
limitaria o poder de Deus, que poderia escolher um caminho mais complicado para algum
fenômeno. No entanto, defendia que o homem, em suas teorias, deveria sempre eliminar
conceitos supérfluos. Dadas duas teorias que explicam um certo fenômeno, preferência deve
ser dada para a mais simples. Eis a chamada “navalha de Ockham”.
Um exemplo do uso desse procedimento foi a proposta de se eliminar o conceito de
ímpeto (ver seção seguinte). Ockham argumentou que dizer “um corpo se move devido ao
ímpeto adquirido” seria equivalente a dizer “um corpo se move”. Assim, seria supérflua a
locução “devido ao ímpeto adquirido”, e toda teoria do ímpeto deveria assim ser descartada.
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