A poesia erótica Verlainiana
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A poesia erótica Verlainiana
KARLA NORONHA DA SILVA A POESIA ERÓTICA VERLAINIANA Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II como requisito à conclusão do Curso de Letras Bacharelado em Estudos Literários, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof.a Sandra Novaes CURITIBA 2007 SUMÁRIO 1. Introdução...............................................................................................................3 2. Breve Biografia.......................................................................................................6 3. Obra........................................................................................................................7 4. Erotismo e Estética..................................................................................................10 4.1 Do Erótico e do Pornográfico........................................................10 4.2 Da Poética......................................................................................12 4.3 Da Influência..................................................................................17 5. Apresentação e Análise............................................................................................21 5.1 Sur le Balcon..................................................................................22 5.2 Pensionnaires..................................................................................25 5.3 Per Amica Silentia..........................................................................27 5.4 Printemps e Été...............................................................................29 5.5 Sappho.............................................................................................31 6. Conclusão..................................................................................................................35 7. Referências................................................................................................................36 8. Anexo........................................................................................................................37 2 1. INTRODUÇÃO A sexualidade e o erotismo acompanham a humanidade desde as civilizações primevas, independente da localização geográfica sobre o globo terrestre. Fazendo, então, parte indissociável do humano, das relações sociais e da perspectiva de continuidade enquanto espécie, nada mais natural, portanto, que a intimidade surgisse como tema nas expressões artísticas de cada povo. A saber, temos pinturas eróticas nas paredes de Pompéia, ornamentos vasculares de cenas sexuais, estátuas eróticas em templos do Oriente, etc. A criação literária serviu, igualmente, à expressão do erotismo. A história da literatura erótica remonta à Antigüidade Clássica grega e romana – abarcando nomes como Safo, Aristófanes e Ovídio -, perpassa a Idade Média – a despeito de toda repressão religiosa do período mencionado – e estende-se por toda a Era Moderna até a contemporaneidade. Não obstante o longo trajeto descrito pela literatura erótica, a mesma foi/é por muitos grupos sociais considerada como imoral e abjeta. Alexandrian, ao dar início a seu ensaio chamado A História da Literatura Erótica, diz, logo ao primeiro parágrafo do prefácio, que tratará de um “assunto considerado frívolo ou imoral”1 por muitos. A produção erótica de Paul Verlaine não escapou ao desprezo da crítica de sua época, não apenas pelo seu teor, mas também devido ao estilo de vida de seu autor. A crítica costuma enxergar, em Verlaine e em sua obra religiosa, traços de remorso por sua vida de amores conturbados, como afirma Yves-Marie Lucot: “escritor errante que oscila entre a libertinagem e o mais profundo remorso por haver abandonado o domicílio 1 ALEXANDRIAN. História da literatura erótica. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1994. 3 conjugal”2. Temos, ainda, Heloísa Jahn que, ao comentar que a obra erótica do poeta sempre foi paralela à oficial, diz que “Mesmo durante a fase de catolicismo mais militante, quando tratava de fazer uma mea culpa de sua vida amorosa, Verlaine ‘infringe’ seu próprio código escrevendo poemas eróticos que manda editar na Bélgica.”3 Segundos esse dois críticos temos uma noção de que a obra verlainiana se divide em dois aspectos conflitantes: o carnal (que responderia pela vivência amorosa polêmica do poeta) e o espiritual (que existiria, principalmente, em função da culpa sentida pelo autor por suas vivências carnais). Entretanto, o próprio artista não vê dessa forma sua experiência lírica erótica e religiosa. Para ele, não há conflitos entre ambas e muito menos contradição poética. É o que nos diz ao falar de Les Amies: Dans ma tête, mon oeuvre, si j´ai le temps de faire une oeuvre, m´aura, moi, mes vices, mes qualités, scrupules, élans bons ou mauvais, pour pivot. Donc, parallélement à mes oeuvres catholiques je veux faire et j´ai fait encore ces derniers temps des vers et de la prose où les sens et leurs vanités, l´orgueil de la vie et l´ivresse de la nature sentie à ma façon tiendront toute la place. Les Amies ne sauraient manquer de prendre place dans ce [box] un peu risqué (VERLAINE4, apud BIVORT, 2000, p. 7). Contudo, para o estudioso da vida e obra de Verlaine, Antoine Adam, não há paradoxo entre a lírica religiosa e a erótica do poeta, pois entende que ambas procedem de uma mesma base, a saber, para o crítico, o amor: “S´il est vrai que sa vie se développe alors sur deux plans parallèles, c´est seulement dans la région des attitudes adoptées. Le fond est commum. Il est cet élan obscur et fort, il est cette volonté de se faire tout accueil, tout 2 LUCOT, Y.M. Disponível em: <http://www.france.org.br/abr/label/label26/letras/verlai.html> Acesso em: 16 out. 2006. 3 JAHN, H. In: VERLAINE, P. Para ser caluniado: poemas eróticos. São Paulo: Brasiliense, 1985. 4 VERLAINE, P. Éditions originales et autographes de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud. Paris, Maggs, 1937. 4 amour.”5 Neste trabalho, selecionou-se o conjunto de poemas Les Amies com o propósito de investigar adequadamente seu lirismo erótico – dando à obra verlainiana a imparcialidade merecida. Compreendemos que analisar uma obra, ou pedaço de obra, sem eventualmente recorrer ao que foi a vida de seu autor – bem como emitir julgamentos morais a respeito seja um tanto quanto utópico, no entanto, parece que Les Amies serve bem a esta proposta, até porque os poemas tratam de amor entre mulheres apenas, sem o discurso falocêntrico encontrado habitualmente na literatura erótica. A seguir, passamos a uma breve biografia do autor, que existe neste trabalho, não com o intuito de usá-la na análise – tal qual dissemos anteriormente –, mas apenas para situarnos de quem foi Paul Verlaine. 5 ADAM, A. Verlaine, l´homme et l´oeuvre. Paris: Haitier-Boivin, 1953. 5 2. BREVE BIOGRAFIA Nascido em 30 de março de 1844, filho de Nicolas-Auguste Verlaine (militar que à época do nascimento do filho tinha 46 anos) e Elisa Dehée (35 anos quando do nascimento), Paul-Marie Verlaine era um filho temporão. Talvez a demora para ter seu único filho – de acordo com o poeta, sua mãe guardava dentro de três potes os restos de suas três gestações frustradas –, tenha feito Elisa amar Paul Verlaine excessivamente, fazendo dele um homem de vontade débil. Verlaine era uma criança mimada e um aluno medíocre. Ao escrever sobre a vida do poeta, Antoine Adam nos diz: “Il avait éte um enfant charmat et tyrannique”6 e ainda “Plus tard Verlaine s’est vanté d’avoir été, au lycée, um fort mauvais élève.”7 Ele inicia, mas não conclui, seu curso de direito e seu pai, preocupado, consegue-lhe um emprego público, afirmando que era necessário casar o filho. O poeta acaba por casarse com a meia-irmã de um amigo seu, Mathilde Mauté Fleurville, e, em 1872, dois anos após o casamento, abandona-a e a seu filho para viver, ao lado do precoce poeta Arthur Rimbaud, uma turbulenta relação que os levou a percorrer diversos países europeus. O relacionamento dos dois tem um final violento em 10 de julho de 1973, na cidade de Bruxelas, quando Verlaine – tentando impedir que Rimbaud o abandone – atira em seu companheiro atingindo-lhe o pulso. Liberto – após os dois anos de prisão que lhe rendeu o atentado contra Rimbaud –, tenta em vão reconciliar-se com o amigo. Tenta ainda, sem sucesso, reatar com a esposa e após as frustradas tentativas de levar uma vida tranqüila e reconciliada ao lado de Mathilde, Verlaine afunda-se no 6 7 Op. cit., p. 6. Id. 6 alcoolismo e, até o final da vida, vive entre freqüentes hospitalizações, falecendo no dia 8 de janeiro de 1896. 3. OBRA As primeiras mostras do interesse de Verlaine pela literatura são de sua época de estudante8. Contudo, Verlaine nasceu para o cenário literário francês em 1863 na Revue du Pogrès Moral, fundada por Louis-Xavier Ricard, quando Miot-Frochot, um amigo de Verlaine, levou-o até Ricard que aceitou publicar “Monsieur Prudhomme”. Segue-se uma breve relação e comentário a respeito das obras mais significativas da produção do autor, com o objetivo de situar o leitor na produção verlainiana. Em 1866 é publicado Poèmes saturniens, sua primeira coletânea. De intenção parnasiana, o livro – apesar de querer-se meramente um jogo estético isento de emocionalidades – está recheado de confissões. Nessa obra, percebe-se já a preferência do poeta pelos ritmos ímpares e pela sugestão de estados emocionais vagos. Em Fêtes galantes, de 1869, tal qual a coletânea comentada anteriormente, percebe-se ainda influência do Romantismo mesclada ao Parnasianismo. Esta obra retoma a elegância das festas da sociedade do séc. XVIII, tão em voga na época, principalmente, no meio intelectual transitado pelo poeta. A este livro pertence o célebre “Clair de Lune” em que se pode perceber as tendências verlainianas na descrição vaga e ambígua de sentimentos e cenário: Votre âme est un paisage choisi Que vont charmant masques et bergamasques Trata-se de alguns versos que datam de 1858. Temos ainda outros: exercícios de tradução para o francês de poetas latinos. 8 7 Jouant du luth et dansant et quasi Tristes sous leurs déguisements fantasques. Tout en chantant sur le mode mineur L’amour vainqueur et la vie opportune, Ils n’ont pas l’air de croire à leur bonheur Et leur chanson se mêle au clair de lune, Au calme clair de lune triste et beau, Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres Et sangloter d’extase les jets d’eau, Les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres.9 Em 1870 temos La bonne chanson, uma coleção de poemas inspirada por seu casamento com Mathilde. Esta obra, vista por alguns críticos como menor, é também considerada por outros significativa pelo fato de mostrar um Verlaine que procura separarse dos ideais estéticos do Parnasso e buscar uma poesia que se sustenta mais sobre os sentimentos delicados que o fazem feliz no momento que sobre os artifícios da estética parnasiana – o poeta referir-se-ia, durante alguns anos, aos fiéis do Parnasso como “l’artisterie”. Les romances sans paroles, de 1874, e Sagesse, de 1880, são duas obras testemunhas da fase de conversão e crise pela qual Verlaine passou ao ser preso após atirar em Rimbaud e ao saber que a esposa pedira o divórcio durante seus dois anos de prisão. Em 1884 é publicada a coleção de poemas conhecida como Jadis et naguère, escrita durante seu cárcere e que – assim como Sagesse – é marcada por poemas místicos e de arrependimento. Contudo, sua produção durante a prisão não se limitou a poemas de retorno ao cristianismo e de arrependimento por sua vida conturbada, mas foi composta igualmente por poemas eróticos que resultaram na publicação de Parallèlement em 1889. A 9 VERLAINE, P. Fêtes galantes, La bonne chanson, Les amies. Paris: Le Livre de Poche, 2000. 8 propósito de Parallèlement, Antoine Adam nos informa que, de acordo com o próprio poeta, trata-se de um livro “plus amer et dur que voluptueux”10. Na prosa, destacam-se o ensaio Les poètes maudits (1884) – fundamental para o reconhecimento posterior de Rimbaud – e os dois textos autobiográficos: Mes hôpitaux (1892) e Mes prisons (1893). 10 Op. cit., p. 142. 9 4. EROTISMO E ESTÉTICA 4.1 DO ERÓTICO E DO PORNOGRÁFICO Damos início a este capítulo trazendo à questão do erotismo de Les Amies uma breve discussão a respeito de uma possível distinção entre o erótico e o pornográfico. Octavio Paz afirma em seu ensaio sobre a obra de Sade: “Não há dúvida, o erotismo é um fato social.”11 A idéia que o crítico mexicano trabalha ao longo de todo o trecho dedicado à metáfora erótica, é a de que o erotismo é a sexualidade complicada. O crítico considera a sexualidade, resumidamente, como o instinto em movimento, visando a procriação da espécie – passando apenas pelo corpo, sem necessidade do intelecto –, ao passo que o erotismo servir-se-ia da sexualidade, porém dando a ela o fator complicador do intelecto humano que a usa e manipula por meio de uma série de regras e ritos convencionados socialmente. A saber, de acordo com Octavio Paz, a sexualidade é a natureza servindo-se da espécie; o erotismo, a espécie servindo-se da natureza, ou seja, o instinto canalizado pela sociedade: Não há uma diferença essencial entre erotismo e sexualidade: o erotismo é sexualidade socializada, submetida às necessidades do grupo, força vital expropriada pela sociedade. (...) Nesse sentido, o erotismo evita que o grupo caia na natureza indiferenciada, opõe-se à fascinação pelo caos e, por fim, à volta da sexualidade rude. E mais: dentro de certas regras estimula e excita a atividade sexual. Freio e espora da sexualidade, sua finalidade é dupla: irrigar o corpo social sem expô-lo aos riscos destruidores da inundação. O erotismo é uma função social.12 Dada essa distinção crítica entre o ato puramente biológico e a ação humana sobre a natureza, passamos a procurar separar, dentro do erotismo – definido por Octavio Paz – e da produção humana artística estimulada pelo mesmo, o que é produção literária erótica e o 11 12 PAZ, O. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999. Ibid., p. 25. 10 que é pornográfica – apesar do poeta Boris Vian considerar impossível distinguir o erótico do pornográfico (VIAN13, apud PAES, 2006, p.15). Na introdução de uma antologia de poemas eróticos de sua seleção e tradução, José Paulo Paes se atém à questão das diferenças entre o erótico e o pornográfico. O autor principia por questionar se, em lugar de dedicar o tempo à poesia erótica, não seria melhor ir direto à carne. Ao longo de seu texto é trabalhada a idéia de que, justamente, o que diferencia a literatura erótica da pornográfica é que esta procura substituir o fato, estimulando a sensorialidade do leitor, ao passo que a aquela estimula o intelecto, buscando, não substituir a realidade, mas complementá-la: “Pelo simples fato de ser uma representação da vida, a literatura não se confunde absolutamente com esta nem lhe pode fazer as vezes. Trata-se, antes, de um prolongamento, de um complemento dela, mesmo porque já se disse que a arte existe porque a vida não basta.”14 O objetivo da literatura erótica é recriar no plano intelectual a vivência do plano físico, representando e complementando a significação da realidade, tal qual a deusa da memória, Mnemosina, era mãe das nove Musas – não advém da gratuidade a representação, simbólica, do mito que nos dá como mãe das artes a memória, pois é preciso, antes de mais nada a experiência da realidade que, após internalizada como lembrança é reprocessada pelo gênio humano sendo devolvida ao mundo exterior como significação. O processo erótico vale-se do carnal, mas não se limita a ele, dando um passo adiante. E é com essa visão fornecida por ambos os autores que assumimos, neste trabalho, a compreensão de que a poesia erótica, que se pretende poesia, precisa passar não apenas pela libido, mas também – e principalmente – pelo processo intelectual-criativo. 13 14 VIAN, B. Escritos pornográficos. São Paulo: Brasiliense, 1985. PAES, J. P. Poesia erótica em tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 11 4.2 DA POÉTICA Dando seqüência à discussão anterior – erótico versus pornográfico – procuraremos, agora, investigar as bases de Les Amies, averiguando de que forma os sonetos trabalham o erotismo dando ao mesmo sua expressão erótica, fruto da inteligência e da sensibilidade do poeta. Antes de mais nada, precisamos encontrar os traços característicos da poesia de Verlaine e, para tanto, começaremos por observar o que o próprio poeta preconiza como fazer poético: ART POÉTIQUE De la musique avant toute chose, Et pour cela préfère l'Impair Plus vague et plus soluble dans l'air, Sans rien en lui qui pèse ou qui pose. Il faut aussi que tu n'ailles point Choisir tes mots sans quelque méprise : Rien de plus cher que la chanson grise Où l'Indécis au Précis se joint. C'est des beaux yeux derrière des voiles, C'est le grand jour tremblant de midi, C'est, par un ciel d'automne attiédi, Le bleu fouillis des claires étoiles ! Car nous voulons la Nuance encor, Pas la Couleur, rien que la nuance ! Oh ! la nuance seule fiance Le rêve au rêve et la flûte au cor ! Fuis du plus loin la Pointe assassine, L'Esprit cruel et le Rire impur, Qui font pleurer les yeux de l'Azur, Et tout cet ail de basse cuisine ! Prends l'éloquence et tords-lui son cou ! Tu feras bien, en train d'énergie, De rendre un peu la Rime assagie. 12 Si l'on n'y veille, elle ira jusqu'où ? O qui dira les torts de la Rime ? Quel enfant sourd ou quel nègre fou Nous a forgé ce bijou d'un sou Qui sonne creux et faux sous la lime ? De la musique encore et toujours ! Que ton vers soit la chose envolée Qu'on sent qui fuit d'une âme en allée Vers d'autres cieux à d'autres amours. Que ton vers soit la bonne aventure Eparse au vent crispé du matin Qui va fleurant la menthe et le thym... Et tout le reste est littérature.15 Este poema – que acabou por servir de bandeira para muitos dos que seguiram os ideiais estéticos simbolistas – ao ser lembrado, via de regra, acaba por ser resumido ao seu célebre primeiro verso: Composto em 1874, o poema “Art Poétique” foi considerado um manifesto simbolista quando surgiu dez anos mais tarde na coletânea Jadis et Naguère. Essa peça célebre define admiravelmente a concepção da poesia de Paul Verlaine. Seu primeiro verso é uma profissão de fé: “De la musique avant toute chose...”16 O termo lírico originalmente liga-se a uma espécie de composição poética que os gregos cantavam ao som da lira. Grande parte do que hoje se denomina composição lírica era musicada; conforme ainda atesta a poesia trovadores medieval. Mesmo depois, quando se destinou apenas à leitura, conservou o remanescente dos seus primórdios, bastando lembrar que uma das características do Simbolismo era a aproximação da música e da poesia. Verlaine começa o poema intitulado “Art Poétique” com um verso que ficou famoso: “De la musique avant toute chose” (a música antes de tudo). Nâo é sem razão que tantas vezes se usa a palavra canto como sinônimo de poema.17 É preciso, entretanto, ir além da menção banal do “De la musique avant toute chose”, buscando compreender esse tratado da poesia verlainiana, que inspirou a muitos, em sua íntegra. 15 VERLAINE, P. Art Poétique. Disponível em < http://www.uni-duisburgessen.de/lyriktheorie/texte/1882_verlaine.html > Acesso em 08 mai 2007. 16 LUCOT, Y.M. Disponível em: <http://www.france.org.br/abr/label/label26/letras/verlai.html> Acesso em: 16 out. 2006. 17 CUNHA, H. P. da. Os gêneros literários. In: Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. 3a ed. Col. Biblioteca Tempo Universitário 42. 13 Como mencionado por Helena P. da Cunha na citação imediatamente anterior, a poesia lírica esteve, desde seu início, diretamente relacionada à música que, por sua vez, é um tipo de linguagem que se expressa de forma diferente do uso habitual que fazemos da língua – seja ela o português, o francês, o alemão, etc. A comunicação verbal diária que praticamos vale-se de fonemas agrupados em palavras que, por sua vez, encadeiam-se em uma seqüência lógica com o intuito de transmitir uma idéia. A comunicação visual e sonora – compreende-se aqui as artes visuais e a expressão musical – se dá de outra forma, isto é, o processo de compreensão de um “texto pictográfico” e de um “texto musical” se dá de forma a não passar pelas palavras. Por exemplo, falar de Beethoven jamais substituirá ouvir a 9a sinfonia – por mais que nos esforcemos no sentido de traduzir em palavras toda a beleza da “Ode à Alegria” –, porque a língua comum e corrente e a música são linguagens diferentes e uma é incapaz de fazer as vezes da outra. A nossa língua do dia-a-dia é chamada de linguagem digital e a música, bem como a expressão visual, é conhecida como linguagem analógica. Na definição do psiquiatra infantil Bernard Golse, em um estudo que investiga os fundamentos da fala na criança: A comunicação analógica é aquela que funciona durante a vida toda, e inicia-se bem cedo. Bem antes de falar e trocar idéias, é preciso partilhar estados psíquicos e níveis emocionais, se não a linguagem não poderá jamais desenvolver-se. Esta comunicação analógica, que transmite sobretudo afetos, emoções, vai permitir partilhar os sentimentos. Ela é amplamente infraverbal, pré-linguística no senso estrito e não codificado. Grandes contornos exprimem, por exemplo, o desejo de se aproximar: nos gestos do corpo, nos movimentos dos olhos, nas mímicas... Não é um código como as palavras ou as sílabas. (...) A comunicação digital vai transmitir, sobretudo, os enunciados, os pensamentos, os conceitos. É, portanto, mais verbal, linguística, segmentar, quer dizer, segmentável em fonemas, em monemas, em sílabas, em letras, e será preferencialmente controlada, em todo caso no ser humano, pelo hemisfério maior.18 18 GOLSE, B. O desenvolvimento da linguagem. Curso de especialização em saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebê. Disponível em <http://inforum.insite.com.br/arquivos/63/O_DESENV._DA_LINGUAGEM.doc> Acesso em 05 mai 2007. 14 Sônia Régis, de forma um pouco mais detalhada, nos informa a respeito das diferenças básicas entre os tipos de linguagem: A música, matriz sonora, compõe uma linguagem, levando-se em conta uma concepção de linguagem que não se submete ao modelo lingüístico, como a teoria semiótica, que não se aplica apenas à linguagem verbal. A música faz parte da matriz sonora, de dominância icônica. Se a proposta das três matrizes da linguagem e pensamento mantém a linguagem verbal com a pertinência do símbolo e a visual com a dominância do índice, a música vai ser uma matriz de competência virtual, pois não tem referência, poder de representar algo fora dela mesma. Uma linguagem com a dominância da primeiridade, do ícone.19 Sendo, então, a linguagem digital – lógica – e a analógica tão diferentes em sua constituição íntima, como pôde Verlaine nos propor que a poesia, antes de mais nada, seja música? Voltamos, portanto, a “Art Poétique”. Nesse poema-tratado encontramos a apologia do impreciso, do vago: “Rien de plus cher que la chanson grise/ Où l’Indécis au Précis se joint.// C’est des beaux yeux derrière des voiles,/ (...) // Car nous voulons la Nuance encor,/ Pas la Couleur, rien que la nuance!/(...)”. Quando a voz poética nos diz que o belo consiste em unir, ao preciso, o vago, o que nos está sendo proposto é uma transformação da linguagem lógica em analógica. Ora, se a linguagem digital procura a aridez da precisão conceitual para isolar, explicar e comunicar idéias, para fazê-la aproximar-se do analógico é necessário imprecisála, tirar dela a objetividade da comunicação banal. É por isso que a voz poética rejeita a cor em prol da nuance e nos recomenda: “Prends l’éloquence et tords-lui son cou!”. A eloqüência é para quem quer comunicar pelo viés da linguagem digital, é para quem quer precisão conceitual, isto é, para quem quer fazer literatura e não poesia: “De la musique encore et toujours!/ (...) // Et tout le reste est littérature.” 15 A musicalidade dos versos e o caráter vago de sua expressão são, recorrentemente vistos como traços típicos da poética de Verlaine, contudo, esses traços têm sido percebidos como características independentes. Na leitura de “Art Poétique” feita neste trabalho, propomos que a prerrogativa da poética verlaniana é, sim, a musicalidade e a imprecisão, mas não separadamente, e sim como o conjunto de uma proposta poética que quer fazer a linguagem poética evadir-se do campo comum e corrente da língua, levando-a a outro patamar. Ou seja, Verlaine não propõe a musicalidade e a imprecisão, como dois efeitos isolados na poesia, antes, propõe um novo uso da língua visando transportá-la a outros campos possíveis da comunicação e da significação. Essas são as premissas intelectuais impostas por Verlaine ao seu fazer poético e é com elas que o poeta joga para manipular a sexualidade humana, fazendo-a erotismo e poesia erótica. Em Les Amies, encontramos uma série de imprecisões na imagem poética que se constrói. Os dois poemas em que se percebe com maior contundência essa imprecisão da imagem poética são “Sur le balcon” e “Per amica silentia”. Em “Sur le balcon”, a imagem poética começa a se construir com o entardecer – horário de luzes oblíquas e matizes delicados – ou seja, a nuance – nem dia, nem noite; encontramos personagens que carregam em si uma “felicidade triste” que, tal qual o entardecer, não é objetivamente nem uma coisa, nem outra, mas algo entre os dois pontos; vemos ainda uma lua que é “mole” – “Tandis qu’au ciel montait la lune molle et ronde” –, tornando a imagem do astro algo fluido. 19 RÉGIS, S. Percepção, linguagem e pensamento. Disponível em <http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/galaxia/article/view/1304/1074> Acesso 05 mai 2007. 16 “Per amica silentia” tem a primeira estrofe inteira a construir um cenário impreciso com “cortinas de espuma branca” que, pelo “clarão pálido da anciã” – entenda-se aqui “anciã” como a lua faltante do título que, a seu turno, corresponde ao verso 255 do livro II da Eneida de Virgílio, a saber, “Per amica silentia lunae” [grifo meu], ou “Pela amiga silenciosa da lua” –, fluem como “ondas opalinas” em uma “sombra molemente misteriosa”. Desta forma Verlaine trabalha a linguagem para afastá-la do terreno da língua comumente comunicativa e trazê-la para o campo da sugestão analógica – artifício que é esforço do intelecto do artista que metamorfoseia a linguagem fazendo-a poética e transformando o erotismo em poesia erótica. 4.3 DA INFLUÊNCIA Neste subcapítulo retomamos o que será posto em relevo ao longo da leitura dos poemas, isto é, a influência estética baudelairiana no erotismo de Les Amies. O diálogo entre o livro analisado neste trabalho e Les fleurs du mal se dá através do aproveitamento formal de rimas e nomes na estrutura dos sonetos e por meio da retomada de algumas questões temáticas baudelairianas. Os exemplos são os vários: 1) “Sur le balcon” retoma a idéia de “Le balcon” ao propor, reafirmando o poema de Baudelaire, a varanda como um lugar propício ao sonho; 2) “Per amica silentia” reaproveita a rima Adeline/câline presente em “Le vin du solitaire”, bem como victimes/sublimes de “Le vin des chiffoniers”, além de apontar para “Femmes damnées” ao referir-se às amantes como “adorables victimes”; 3) “Sur le balcon” tal qual 17 “Per amica silentia” e “Sappho” trazem a temática do maldito, do excluído do mundo, idéia tão reiteradas vezes usada por Baudelaire O reaproveitamento formal de rimas e nomes não deve ser visto como cópia ou prova de uma suposta submissão estética e intelectual de Paul Verlaine perante a obra de Baudelaire, posto que aquele trabalhou esses empréstimos ao texto baudelairiano a sua forma – a poesia de Verlaine, a despeito da influência de Baudelaire, guarda características muito próprias em seu estilo: Verlaine emprunte à son aîné des thèmes, quelques images, des prénoms, des rimes. Son imitation n’a rien de servile: ici pas de péché, pas de damnation, pas d’outrages, mas des rougeurs, des bouffées de chaleur, des fatigues amoureuses.Et les clichés du genre: la blonde, la noire et la rousse, l’expérimentée et la novice, la maîtresse et l’élève... en somme, les ingrédients classiques d’une petite plaquette licencieuse de bon niveau, avec une singularité: la suite des rimes feminines, évidemment significative.20 A influência temática deve ser encarada da mesma forma, isto é, Verlaine apropriase, por exemplo, da temática do excluído, mas faz isso a sua própria maneira. Por exemplo, sabemos que Les Amies, mais do que com qualquer outro poema de Les fleurs du mal, mantém um diálogo com “Femmes damnées”: “(...) il poursuit dans Les Amies une tradition érotique dans le sillage des ‘Femmes damnées’ de Baudelaire(...)”21. Entretanto o tipo de exclusão presente no poema de Baudelaire é diferente daquela apresentada em Les Amies. Em “Femmes damnées” (ver anexo) a exclusão de Delphine e Hippolyte se dá pela estética do mal, ou seja, pela escolha consciente do mal. Como nos aponta Friedrich, aquilo que é artificial, proveniente da razão e do cálculo humano é prerrogativa da poética baudelairiana. Em Baudelaire, inclusive o mal deve ser fruto da inteligência, ao passo que o mal proveniente de instintos baixos, 20 21 Op. cit., p. 9. Ibid., p. 6. 18 irracionais, são repudiados: “Na medida em que se pode definir em poucas palavras, diríamos que o satanismo de Baudelaire é a sobrepujança do mal simplesmente animal (e, portanto, do banal) pelo mal engendrado pela inteligência, com o fim de dar o salto à idealidade, graças ao grau supremo de mal”22. As amantes de “Femmes damnées” confirmam a estética do mal de Baudelaire se observarmos cuidadosamente o poema. Em um primeiro momento, temos um traçado do cenário da paixão – “À la pâle clarté des lampes languissantes, / Sur de profonds coussins tout impregnés d’odeur...” – que vai do primeiro verso do poema até o vigésimo quarto, quando, então, temos a fala de Delphine. Pode-se resumir a fala desta personagem a sua primeira estrofe de discurso direto: ................................................................................. - “Hippolyte, cher coeur, que dis-tu de ces choses? Comprends-tu maintenant qu’il ne faut pas offrir L’holocauste sacré de tes première roses Aux souffles violents qui pourraient les flétrir?” ................................................................................ A esta demanda, responde, contudo, Hippolyte com dúvidas a respeito da retidão da paixão que as consome – “Je sens fondre sur moi de lourdes épouvantes / Et de noirs bataillons de fantômes épars, / Qui veulent me conduire en des routes mouvantes / Qu’un horizon sanglant ferme de toutes parts. // Avons-nous donc commis une action étrange?”. Contra o que, Delphine argue, furiosamente, perguntando “- ‘Qui donc devant l’amour ose parler d’enfer?’”. Quando Hippolyte opta – eis a palavra – por abraçar o amor que ela própria cria como provável pecado – “Je veux m’anéantir dans a gorge profonde / Et trouver sur ton 22 FRIEDRICH, H. In: Obra completa de Charles Baudelaire. Ed. Aguilar, 1995. 19 sein la fraîcheur des tombeaux!” [grifo meu] – faz-se presente, nas três últimas estrofes, uma voz-epílogo que soa, entretanto, como prelúdio para a tragédia e danação que há de decorrer dessa opção: “Loin des peuples vivants, errants condamnées, / A travers les désers courez comme les loups; / Faites votre destin, âmes désordonnées, / Et fuyez l’infini que vous portez en vous!” [grifo meu] Portanto, no poema, o reconhecimento de algo como sendo mau – ao menos ao ver de uma das personagens – apenas reforça a infâmia da escolha do mal. Ou seja, se as amantes encontravam-se envolvidas amorosamente, a princípio, pelo mero desejo, tão somente por instintos irracionais, posteriormente, esse impulso instintivo se racionaliza, fazendo da opção pelo mal o “salto a idealidade”. Delphine e Hippolyte são excluídas do mundo pelo viés do mal e do pecado, ao passo que o tipo de exclusão existente em “Per amica silentia”, por exemplo, eleva as amantes ao patamar de santas, de eleitas – “Aimez, aimez! ô chères Esseulées, / Puisqu’en ces jours de malheurs, vous encore, / Le glorieux Stigmate vou décore.” Portanto, é patente a influência da estética de Baudelaire sobre Verlaine, entretanto, este retoma as propostas poéticas daquele dando a elas uma cor mais sua, mais condizente com seu temperamento poética – mais afeito à delicadeza que ao hediondo. 20 5. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE Les Amies tem uma complexa saga de publicações que se inicia em 8 de agosto de 1867, quando Verlaine publica no Hanneton – jornal literário dirigido por Eugène Vermersch – o soneto “Sappho”, do qual foi retirado, a partir das últimas palavras do poema, o título do conjunto de poemas eróticos. A primeira edição íntegra dos seis sonetos foi publicada por Auguste PouletMalassis – o antigo editor de Baudelaire – clandestinamente em Bruxelas, um ano após Les Épaves de Baudelaire. Entretanto, uma parte da tiragem caiu nas mãos da justiça e, em 6 de maio de 1868, o Tribunal Correction de Lille ordenou a destruição de vários títulos – dentre eles Les Amies e Les Épaves – por “outrages à la morale publique et religieuse ainsi qu’aux bonnes moeurs”23. Contudo, uma segunda e uma terceira edição da obra aparecem em 1870 – sempre em Bruxelas – com pequenas alterações das quais nem Verlaine, nem Poulet-Malassis tomaram parte. É preciso observar que Verlaine não encarava Les Amies como uma obra leviana de expressão erótica. Prova disso é a insistência com que o poeta pede a Lepelletier que lhe envie cópias dos poemas; a saber, ele termina uma carta para seu interlocutor, em 23 de maio de 1873, com “les amies! les amies! les amies! les amies! les amies! Les Amies!”(VERLAINE24, apud BIVORT, 2000, p. 36). Dez anos depois, em setembro de 1883, o poeta decide reeditar Les Amies, 23 BIVORT, O. Les amies, une édition clandestine. In: VERLAINE, P. Fêtes galante; La bonne chanson; Les Amies. Paris: Le Livre de Poche, 2000. 24 Op. cit., p. 97. 21 entregando a Charles Morice a única chapa25 restante que possuía. A idéia era publicar os sonetos juntamente a água-fortes de Forain. Todavia, o projeto não deu certo e a obra reaparecerá na edição de outubro de 1884 de La Revue Indépendante – fundada em maio do mesmo ano por Fénéon e Georges Chévries. Verlaine tentou, ainda, publicar o conjunto de poemas em Jadis et Naguère, porém Vanier, seu editor, julgou inadequado. Les Amies aguardou sua publicação em Parallèlement, em 1889, para, definitivamente, tomar seu lugar na obra poética verlainiana. Passamos agora a uma leitura detida dos sonetos, que não se pretende como análise, para, então, comentarmos alguns traços da poesia erótica de Verlaine. 5.1 SUR LE BALCON Toutes deux regardaient s´enfuir les hirondelles; L´une pâle aux cheveux de jais, et l´autre blonde Et rose, et leurs peignoirs légers de vieille blonde Vaguement serpentaient, nuages, autour d´elles. Et toutes deux, avec des langueurs d´asphodèles, Tandis qu´au ciel montait la lune molle et ronde, Savouraient à longs trait l´émotion profonde Du soir, et le bonheur triste des coeurs fidèles. Telles, leurs bras pressant, moites, leurs tailles souples, Couples étrange qui prend pitié des autres couples, Telles sur le balcon rêvaient les jeunes femmes. Derrière elles, au fond du retrait riche et sombre, Emphatique comme un trône de mélodrame, Et plein d´odeurs, le lit défait s´ouvrait dans l´ombre.26** Este é um poema de atmosfera tipicamente verlainiana, com sua delicada estrutura 25 Meio utilizado em métodos de impressão rotativa. VERLAINE, P. Fêtes galantes, La bonne chanson, Les amies. Paris: Le Livre de Poche, 2000. ** Todos os poemas de Les Amies foram tirados da referência imediatamente anterior. 26 22 de cenário e langor. A voz lírica e descritiva do poema se inicia, à primeira estrofe, a pintar as duas amantes de forma muito delicada, referindo-se a elas numa construção de sugestão doce e sonhadora, a observar as andorinhas evadirem-se. A menção às aves que se vão nos dá, logo de cara, a informação de um entardecer em que os pássaros se recolhem com a chegada da noite. Esse clima de lusco-fusco é característico da poética de Verlaine na qual não iremos jamais encontrar, por exemplo, os arroubos de luminosidade de Rimbaud – diznos Anna Balakian que enquanto “Verlaine procura as possibilidades infinitas do vago e as incertezas da nuança, Rimbaud fornece em suas descrições detalhes completos e acabados... (...) Onde Verlaine procura esconder a natureza, Rimbaud fala de desvendá-la ou iluminála, e de encontrar suas cores primevas”27. Verlaine, como poeta com os dois pés fincados no estilo simbolista, apenas sugere atmosferas – nem luz, nem sombras. Esse traço de imprecisão, de esfumaçado, transparece, igualmente ao descrever a roupagem das personagens. O roupão usado pelas duas tem um quê de bruma. A imprecisão aqui aparece na própria visualização das roupas, que, “nuvens”, “vagamente serpenteiam” ao redor das duas. Na segunda estrofe, é nos apresentado o langor – estado de alma muito presente na obra do poeta –, contudo, inclusive esse sentimento/sensação é imprecisado ao ser imprecisado por “asphodèles” que, diz-nos Olivier Bivort em uma nota a respeito do poema aqui tratado, é de uma família de plantas sagradas mantidas ao redor dos túmulos28. Encontramos ainda nessa estrofe, o completar da metamorfose do dia em noite com a menção à lua que é redonda, mas, antes, é “mole” – adjetivo que dá fluidez e imprecisão ao astro. 27 28 BALAKIAN, A. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. Op. cit., p.50. 23 Outro traço verlainiano que enxergamos com clareza é a descrição da característica feliz e, simultaneamente, triste do coração das amantes. O poeta sustenta uma atmosfera muito semelhante no poema “Claire de Lune”: Votre âme est un paysage choisi Que von charmant masques et bergamasques Jouant du luth et dansant et quasi Tristes sous leurs déguisements fantasques. Tout en chantant sur le mode mineur L’amour vainqueur et la vie opportune, Ils n’ont pas l’air de croire à leur bonheur Et leur chanson se mêle au clairde lune, Au calme clair de lune triste et beau, Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres Et sangloter d’extase les jets d’eau, Les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres.29 [grifo meu] A terceira estrofe nos apresenta duas informações interessantes que apontam para a poesia de Baudelaire. Primeiramente o dado de que as duas, “casal estranho”, têm piedade dos outros casais. Essa visão do distanciamento entre a realidade vulgar e os eleitos remete à forte imagem baudelairiana do poeta maldito, transfigurado em cisne ou albatroz, que não pertence ao mundo comum de todas as pessoas. Outro empréstimo a Baudelaire é o fato das duas encontrarem-se sonhando “sur le balcon”. Em Les fleurs du mal, há um poema chamado “Le balcon” que designa a varanda como um lugar de observação e sonho: Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses, O toi, tous mes plaisirs! ô toi, tous mes devoirs! Tu te rappeleras la beauté des caresses, La douceurs du foyer et le charme des soirs, Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses, Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon, Et les soirs au balcon, voilés de vapeurs roses. 29 Op. cit., p. 65. 24 Que ton sein m’était doux! que ton coeur m’était bon! Nous avons dit souvent d’impérissables choses Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon. Que les soleils sont beaux dans les chaudes soirées! Que l’espace est profond! Que le coeur est puissant! En me penchant vers toi, reine des adorées, Je croyais respirer le parfum de ton sang. Que les soleils sont beaux dans les chaudes soirées! La nuit s’épaississait ainsi qu’une cloison, Et mes yeux dans le noir devinaient tes prunelles, Et je buvais ton souffle, ô douceur! ô poison! Et tes pieds s’endormaient dans mes mains fraternelles. La nuit s’épaississait ainsi qu’une cloison.30 É necessário observar que a influência baudelairiana é tão forte que o título do soneto adveio dessa alusão ao poema de Les fleurs du mal. Ao final do poema, no último terceto, a voz condutora conclui a imagem poética ao pintar-nos o plano de fundo, ao mesmo tempo “rico e obscuro” – sempre as antíteses, como a luz e a sombra do entardecer –, composto pela cama que, por sua vez também é “plein d’odeurs”, como em “La mort des amants” de Baudelaire – “Nous aurons des lits pleins d’odeur légères”31 –, como observa Bivort32. Assim, a voz poética encerra o primeiro poema de Les Amies evocando, uma vez mais, a sombra do mais maldito dentre os poetas. 5.2 PENSIONNAIRES L’une avait quinze ans, l’autre en avait seize; Toutes deux dormaient dans la même chambre; C’était par un soir très lourd de septembre; Frêles; des yeux bleus; des rougeurs de fraise. Chacune a quitté, pous se mettre à l’aise, Sa fine chemise au frais parfum d’ambre. La plus jeune étend les bras, et se cambre, Et sa soeur, les mains sur ses seins, la baise. 30 BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Nova Fronteira, 2004. Ibid., p. 430. 32 Op. cit., p. 50. 31 25 Puis tombe à genoux, puis devient farouche, Et colle sa tête au ventre, et sa bouche Plonge sous l’or blond, dans les ombres grises; Et l’enfant pendant ce temps-là recense Sur ses doigts mignons des valses promises, Et, rose, sourit avec innocence. O título, e o tema, deste soneto remete à idéia, retomada diversas vezes na literatura erótica, de que cenas de teor erótico se davam em pensionatos de moças. Olivier Bivort comenta, em uma nota a respeito do poema: “La littérature érotique a fait des ‘pensionnats de demoiselles’ le cadre de très nombreuses scènes plus ou moins légèrs”33. Este soneto mantém, portanto, um diálogo com uma tradição da literatura erótica que se construía. Esta pista de que Verlaine não escrevia, simplesmente, pelo bel prazer de sua libido, mas escrevia com a argúcia de uma mente consciente de um diálogo literário, não é a única presente no texto, como veremos a seguir. Na primeira estrofe, a voz poética nos apresenta as personagens – duas jovens de quinze e dezesseis anos que dividem o quarto – e a atmosfera – um noite pesada de setembro, a saber, no hemisfério norte, uma noite de verão, portanto, uma noite de calor que justifica a retirada das vestes das jovens na segunda estrofe. As duas são descritas de forma delicada, doce. A delicadeza das duas transparece não apenas em “Frêles” – último verso –, mas inicia-se com a informação da pouca idade das duas, tornando-as quase infantes – essa idéia é reforçada pela voz poética no segundo terceto. O segundo quarteto dá continuidade à idéia de pureza e inocência infantil ao sugerir que as garotas tiraram suas vestes em função do calor pesado de setembro. Os dois versos que se referem ao ato de se despir – 1º e 2º da 2a estrofe – vêm na seqüência da 1a estrofe, 33 Op. cit., p. 52. 26 ou seja, encadeados à construção do cenários de uma pesada e quente noite, como que justificando o despir-se. Essa sutil justificativa torna, uma vez mais, o cenário erótico mais próximo da inocência que da ação luxuriosa. Entretanto, nesses dois versos, o despir-se é seguido por outros dois em que se principiam as carícias entre as jovens. A saber, o fato de tirar as roupas não ser objetivamente ligado ao enlace carnal, mas ficar em um meio termo – inclusive na estrutura do poema – entre o prazer e a naturalidade do conforto, tira o vulgar do poema, colocando em seu lugar a sugestão tão cara a Verlaine, seguida da construção de uma pureza inerente. No oitavo verso do poema, após o início do rito sáfico do amor, a voz poética refere-se à mais velha das amantes como “irmã” da outra, criando entre elas uma espécie de cumplicidade religiosa, transportando o ritual amoroso, descrito no primeiro terceto, do nível carnal para um sagrado, espiritual. Na última estrofe, a voz poética confirma toda a estrutura de sugestão de inocência e pureza construída ao longo do soneto ao referir-se, abertamente, a mais nova como “criança” e apresentá-la docemente sonhadora – contando nos dedos as valsas prometidas – e sorrindo “inocente”. 5.3 PER AMICA SILENTIA Les longs rideaux de blanche mousseline Que la lueur pâle de la vieilleuse Fait fluer comme une vague opaline Dans l’ombre mollement mystérieuse, Les blanc rideaux du grand lit d’Adeline Ont entendu, Claire, ta voix rieuse, Qu’une autre voix enlace, furieuse. “Aimons, aimons!” disaient vos voix mêlées, Claires, Adeline, adorables victimes Du noble voeu de vos âmes sublimes, 27 Aimez, aimez! Ô chères Esseulées, Puisqu’en ces jours de malheur, vous encores, Le glorieux Stigmate vous décore. Neste soneto, Verlaine, mais uma vez, nos demonstra a influência recebida de Baudelaire – como vimos em “Sur le balcon”. Após a descrição de um cenário tipicamente verlainiano – em que as coisas jamais são sólidas e definitivas, mas fluidas, incertas, plenas de meias-luzes e cores vacilantes –, na primeira estrofe, o segundo quarteto, ao nos apresentar as duas amantes do soneto, dialoga com a obra baudelairiana ao rimar “Adeline” – nome de uma das personagens – com “câline”, tal qual encontramos no poema “Le vin du solitaire” em Les fleurs du mal: “Un baiser libertin de la maigre Adeline;/ Les sons d’une musique énervante et câline”34[grifo meu]. Na terceira estrofe vemos não apenas uma, mas duas referências a Baudelaire, a saber, a referência às amantes como “adorables victimes” que aponta diretamente a “Femmes damnées” em que Delphine e Hippolyte são, por sua vez, “lamentables victimes”. Olivier Bivort, a respeito do trecho mencionado, cita Antoine Adam: “A. Adam signale que les ‘adorables victimes’ de Verlaine étaient, dans les ‘Femmes damnées’, de ‘lamentables victimes’”(ADAM35, apud BIVORT). A presença da rima victimes/sublimes também é posta em relevo por Bivort porque ela não é gratuita, pois, tal qual Adeline/câline, essa rima é presente em Baudelaire no poema “Le vin des chiffoniers”: “Il prête des serments, dicte des lois sublimes,/ terrasse les méchants, relève les victimes”36. No segundo terceto, quarta e última estrofe, a voz poética, tal qual na poética baudelairiana, vê nas mulheres amantes o símbolo dos eleitos e malditos, distanciados da 34 Op. cit., p. 384. ADAM, A. Le vrai Verlaine. 1936. 36 Op. cit., p. 378. 35 28 existência banal. Essa visão da voz poética é demonstrada, primeiramente, com o uso do termos “Esseulées” – diz-nos Bivort, “Celles qui sont laissées seules et eloignées de tous. Elles sont, chez Baudelaire, ‘loin des peuples vivants, errantes, condamnées’.”37 – e, ao último verso, com a composição da idéia de que as amantes são como que mártires, santas do amor que as une, ao fazê-las portadoras de um estigma maiúsculo e “glorieux”, por alusão ao cristianismo em que os estigmas seriam as feridas do Cristo reproduzidas por Deus apenas nos santos, ou seja, naqueles que estão à parte do mundo e muito próximos da divindade. Na poética de Les Amies o homoerotismo representado não é vil, tampouco pornográfico, mas sagrado e elevado. 5.4 PRINTEMPS E ÉTÉ PRINTEMPS ÉTÉ Tendre, la jeune femme rousse, Que tant d’innocence émoustille, Dit à la blonde jeune fille Ces mots, tout bas, d’une voix douce: Et l’enfant répondit, pâmée Sous la fourmillante caresse De sa pantelante maîtresse: “Je me meurs, ô ma bien-aimée! “Sève qui monte et fleur qui pousse, Ton enfance est une charmille: Laisse errer mes doigts dans la mousse Où le bouton de rose brille. Je me meurs; ta gorge enflammée Et lourde me soûle et m’oppresse; Ta forte chair d’où sort l’ivresse Est étrangement parfumée. Laisse-moi, parmi l’herbe claire, Boire les gouttes de rosée Dont la fleur tendre est arrosée; Elle a, ta chair, le charme sombre Des maturites estivales, Elle en a l’ambre, elle en a l’ombre. Afin qui le plaisir, ma chère, Illumine ton front candide, Comme l’aube l’azur timide.” Ta voix tonne dans les rafales, Et ta chevelures sanglante Luit brusquement dans la nuit lente.” 37 Op. cit., p. 54. 29 Estes dois sonetos formam um diálogo entre as duas amantes. A seqüência lógica do diálogo entre os dois é a mesma das estações – primavera antecedendo ao verão. Contudo, o diálogo entre os dois poemas se dá em outros níveis que o encadeamento lógico entre os títulos. No primeiro – no poema que porta a idéia da primavera, da exuberância que precede a plenitude do verão – há a proposta de amor e enlace – o que combina com todo o mito da estação que supostamente, é propícia a que os casais apaixonem-se, ao amor e à fecundidade de toda a natureza – e a menção ao corpo da mais jovem – daquela que ainda está desabrochando, tal qual as flores nessa estação. A mais velha – a “jovem mulher ruiva” – tece para a outra – “a garota loira” – uma proposta amorosa pautada em metáforas entre a genitália feminina e as flores – mais especificamente, a rosa que é, por excelência, na tradição literária ocidental, a representação do sexo feminino: “La métaphore filée jardin/corps de la femme et sexe sont des topoi de la littérature amoureuse et érotique depuis l’âge classique.”38 Em suma, temos em “Printemps” a construção de uma sexualidade tenra, iniciante, jovem e primaveril – é preciso observar que, para a ruiva, a jovem é inocente, 2º v., e tem o semblante doce, v. 13. Já em “Été”, temos a construção de um enlace e de uma personagem menos delicados e mais densos. Enquanto que no poema anterior a primavera dava o mote tanto no desabrochar do amor quanto nas comparações entre o corpo da jovem loira e as flores, no presente soneto, encontramos o envolvimento amoroso/sexual em seu ápice – tal que o sol no andar das estações. A descrição que encontramos da personagem mais velha – mais madura, como o verão em relação à primavera – é mais agressiva, se considerarmos que a 30 jovem, em meio à volúpia sexual, afirma sentir-se oprimida pela garganta inflamada de sua amante. A mulher ruiva não é comparada à delicadeza das flores, tal qual a jovem loira. Énos descrito que a carne daquela tem “um encanto sombrio” e que ela é “estranhamente perfumada”. A personagem é ainda descrita com uma “voz que ressoa nas tempestades” e que seu cabelo cor de fogo “reluz bruscamente na noite”. Os dois sonetos comparam e aproximam natureza e mulher, expandindo a relação entre as amantes para um envolvimento maior que de dois seres humanos, fazendo do enlace amoroso das duas um evento da ordem natural do mundo. 5.5 SAPPHO Furieuse, les yeux caves et les seins roides, Sappho, que la langueur de son désir irrite, Comme une louve court le long des grèves froides. Ele songe à Phaon, oublieuse du rite, Et voyant à ce point ses larmes dédaignées, Arrache ses cheveux immenses par poignées. Puis elle évoque en des remords sans accalmies Ces temps où rayonnait, pure, la jeune gloire De ses amours chantés en vers que la mémoire De l’âme va redire aux vierge endormies. Et voilà qu’elle abat ses paupières blêmies, Et saute dans la mer où l’appelle la Moire, Tandis qu’au ciel éclate, incendiant l’eau noire, La pâle Séléné qui venge les Amies. O último soneto do conjunto foi o primeiro a ser produzido pelo poeta e traz em sua estrutura um arranjo interessante por tratar-se de um soneto – dois quartetos e dois tercetos – invertido, isto é, os tercetos vêm antes dos quartetos. Como é de se esperar, esse estranho arranjo não é gratuito, posto que reflete a idéia gráfica da condição da personagem que dá nome ao poema, a saber, a poetisa grega da ilha de Lesbos, Safo. 38 Op. cit., p. 56. 31 A dita ilha grega ficou conhecida pela História por ter sido uma ilha de população predominantemente feminina onde era comum a prática da relação sexual entre mulheres. Portanto, ficaram os termos lesbianismo – referente à ilha – e safismo – referente à poetisa, “Célèbre poétesse grecque des VIIe-VIe avant J.C., née à Mytilène, dans l’île des Lesbos. Elle organisa des compagnies des jeunes filles, où étaient enseignées la poésie, la musique et la danse. On a conservé d’elle quelques odes et des fragments où ele chante l’amour et la passion dans des vers d’un erostime lyrique sans autre exemple dans l’Antiquité.”39 – para referirem-se à união sexual entre mulheres. Da poetisa, temos o seguinte poema que sobreviveu ao fogo da Igreja – que, no séc. XI, queimou toda a sua obra contida em nove volumes: A UMA MULHER AMADA Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro! Quem goza o prazer de te escutar, quem vê, às vezes, teu doce sorriso. Nem os deuses felizes o podem igualar. Sinto um fogo sutil correr de veia em veia por minha carne, ó suave bem querida, e no transporte doce que a minha alma enleia eu sinto asperamente a voz emudecida. Uma nuvem confusa me enevoa o olhar. Não ouço mais. Eu caio num langor supremo; E pálida e perdida e febril e sem ar, um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.40 Ilha e poetisa têm seus nomes profundamente ligados ao homossexualismo feminino e, tanto na poesia verlainiana quanto na de Baudelaire, as duas são retomadas em poemas de teor homoerótico feminino. 39 Op. cit., p. 60. SAFO. A uma mulher amada. In: ELLIS, C. Safo, versos imortais. Disponível em <http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura> Acesso em: 08 mai 2007. 40 32 Em Verlaine, o presente soneto se vale não apenas da associação semântica entre Safo e o lesbianismo, como também do mito de que a poetisa haveria se apaixonado por Fáon e, por não ter sido correspondida, acabou por suicidar-se41. O poema constrói uma Safo desfeita e desesperada já no primeiro verso ao descrevê-la furiosa e com os olhos fundos. No primeiro verso da segunda estrofe, a voz poética nos apresenta à razão do desespero da personagem: Fáon, um homem. E acrescenta, logo em seguida, que a personagem, por conta de seu amor não correspondido pelo barqueiro, encontra-se “esquecida do rito” e a arrancar-se os cabelos. O rito do qual trata o poema é, claramente, o lesbianismo. No poema de nome “Lesbos” de Les fleurs du mal, encontramos o seguinte trecho, na décima quarta estrofe, que se refere ao mesmo tema que “Sappho”, insinuando, uma vez mais, a influência de Baudelaire sobre Verlaine: – “De Sapho qui mourut le jour de son blasphème, / Quand, insultant le rite (grifo meu) et le culte inventé, / Elle fit son beau corps la pâture suprême / D´un brutal dont l´orgueil punit l´impiété / De celle qui mourut le jour de son blasphème.” Na penúltima estrofe de “Sappho”, a personagem apresenta remorsos por haver deixado para trás o tempo em que cantava seus amores. E, finalmente, na última estrofe, temos a descrição do suicídio de Safo – a poetisa lança-se ao mar. E é aqui que o arranjo invertido do soneto encaixa-se à idéia do poema; a inversão da forma tradicional do soneto aponta para duas inversões ocorridas no mito retratado: primeiramente, Safo encontra-se em um estado amoroso, do ponto de vista do rito sáfico, invertido, pois, em lugar de entregar-se as suas iguais, amou um homem. Essa inversão na ordem sacra dos ritos 41 FÁON –Herói da ilha de Lesbos. Era um barqueiro pobre, velho e feio. Como recompensa por tê-la transportado gratuitamente, quando se apresentou a ele disfarçada de anciã, Vênus presenteou-o com um frasco de bálsamo. Ungindo-se com esse líquido todos os dias, ao fim de pouco tempo, o barqueiro transformou-se num jovem de grande beleza, amado por todas as mulheres da ilha. A poetisa Safo também se 33 femininos retratados ao longo dos cinco sonetos anteriores é a razão para a inversão seguinte, ou seja, para a representação gráfica, no soneto, da queda de Safo ao suicidar-se. O soneto sugere, em sua estrutura de ponta-cabeça, a aparência de alguém – não por coincidência esse alguém dá o nome ao soneto invertido – que se arremessou de um lugar alto, alguém que tem sua cabeça – parte do corpo símbolo do que é elevado, do intelecto – voltada para baixo, para o inferior; trata-se de alguém invertido, alguém em queda. Ao nomear o soneto “Sappho” e inverter os quartetos e os tercetos, o que temos é uma resolução gráfica da imagem de Safo em decadência por um amor que contradiz os ritos femininos – é como vermos o quadro de alguém e nome dessa pessoa escrito logo abaixo identificando. “Sappho” não apenas nos fala do suicídio da poetisa, mas nos faz “ver” a mesma em seu desespero e morte. Ainda na última estrofe, encontramos a menção a Selene, nome grego da Lua – representação simbólica, ao longo de toda a história do Ocidente, do feminino. Selene, apesar de tratar-se apenas de uma entidade sideral para os gregos, com o tempo, passou a ser identificada com a deusa Ártemis – Diana para os latinos – que, igualmente, era uma deusa muito próxima da identidade feminina, visto que era a deusa protetora das amazonas – ainda mais que Ártemis nunca uniu-se a homem algum, mas viveu sempre em companhia de suas companheiras, livre e selvagem nos bosques da montanhosa Arcádia. Não é à toa que, no poema, Selene – tão carregada de significados para a mitologia – é aquela que “venge les Amies”, é aquela que luta para preservar a pureza dos ritos e amores pertencentes apenas às poucas escolhidas. enamorou de Fáon, e, como não fosse correspondida em seu afeto, suicidou-se, lançando-se do alto de um rochedo. 34 6. CONCLUSÃO Como havíamos comentado na introdução desta pesquisa, a literatura erótica tem uma história de infâmia que a impede de ser racional e esteticamente apreciada. Paul Verlaine e sua obra erótica não escaparam a essa censura. Entretanto, a dificuldade encontrada não se limita à marginalidade com que a literatura erótica é tratada pela crítica, mas, no caso de Verlaine, os obstáculos apresentam-se, ainda, graças à polêmica vida do poeta e, também, a Arthur Rimbaud – dois fatores que desviam o olhar crítico da obra em direção a sua vida pessoal. Basta, por exemplo, citarmos a crítica Anna Balakian que, em seu estudo sobre o Simbolismo, ao falar sobre a poética de Verlaine, acaba por fazer um capítulo comparativo entre a obra deste com a de Rimbaud. A obra de Verlaine, para ser apreciada criticamente, prescinde de “fofocas” históricas de sua controversa vida, bem como da produção literária de Rimbaud – a poesia verlainiana é consistente o suficiente para fazer sentido sozinha. Portanto, nesta pesquisa foi focada a obra do poeta – tantas vezes delegado à estrela coadjuvante da genialidade precoce e rebelde de seu impetuoso amante – e não sua vida. Desta forma, o objetivo proposto deste trabalho foi alcançado – sem, contudo, pretender haver, de forma alguma, esgotado o assunto –, a saber: distinguimos o erótico do pornográfico e delineamos os traços estéticos encontrados em Les Amies demonstrando, assim, como o conjunto de sonetos em questão é fruto mais do intelecto que da carne do poeta; dando à poesia erótica de Verlaine a atenção crítica merecida, livre de ruídos biográficos e morais. 35 7. REFERÊNCIAS ADAM, A. Verlaine, l´homme et l´oeuvre. Paris: Haitier-Boivin, 1953. ALEXANDRIAN. História da literatura erótica. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1994. BALAKIAN, A. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Nova Fronteira, 2004. CIVITA, V. et al. Dicionário de mitologia greco-romana. São Paulo: Abril Cultural, 1973. CUNHA, H. P. da. Os gêneros literários. In: Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. 3a ed. Col. Biblioteca Tempo Universitário 42. FRIEDRICH, H. In: Obra completa de Charles Baudelaire. Ed. Aguilar, 1995. GOLSE, B. O desenvolvimento da linguagem. Curso de especialização em saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebê. Disponível em <http://inforum.insite.com.br/arquivos/63/O_DESENV._DA_LINGUAGEM.doc> Acesso em 05 mai 2007. LUCOT, Y.M. Disponível em: <http://www.france.org.br/abr/label/label26/letras/verlai.html> Acesso em: 16 out. 2006. PAES, J. P. Poesia erótica em tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. PAZ, O. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999. RÉGIS, S. Percepção, linguagem e pensamento. Disponível em <http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/galaxia/article/view/1304/1074> Acesso 05 mai 2007. SAFO. A uma mulher amada. In: ELLIS, C. S. Safo, versos imortais. Disponível em <http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura> Acesso em: 08 mai 2007. VERLAINE, P. Art Poétique. Disponível em <http://www.uni-duisburgessen.de/lyriktheorie/texte/1882_verlaine.html> Acesso em 08 mai 2007. VERLAINE, P. Fêtes galantes; La bonne chanson; Les Amies. Paris: Le Livre de Poche, 2000. VERLAINE, P. Para ser caluniado: poemas eróticos. São Paulo: Brasiliense, 1985. 36 8. ANEXO FEMMENS DAMNÉES A la pâle clarté des lampes languissantes, Sur de profonds coussins tout imprégnés d'odeur Hippolyte rêvait aux caresses puissantes Qui levaient le rideau de sa jeune candeur. Elle cherchait, d'un oeil troublé par la tempête, De sa naïveté le ciel déjà lointain, Ainsi qu'un voyageur qui retourne la tête Vers les horizons bleus dépassés le matin. De ses yeux amortis les paresseuses larmes, L'air brisé, la stupeur, la morne volupté, Ses bras vaincus, jetés comme de vaines armes, Tout servait, tout parait sa fragile beauté. Etendue à ses pieds, calme et pleine de joie, Delphine la couvait avec des yeux ardents, Comme un animal fort qui surveille une proie, Après l'avoir d'abord marquée avec les dents. Beauté forte à genoux devant la beauté frêle, Superbe, elle humait voluptueusement Le vin de son triomphe, et s'allongeait vers elle, Comme pour recueillir un doux remerciement. Elle cherchait dans l'oeil de sa pâle victime Le cantique muet que chante le plaisir, Et cette gratitude infinie et sublime Qui sort de la paupière ainsi qu'un long soupir. - " Hippolyte, cher coeur, que dis-tu de ces choses ? Comprends-tu maintenant qu'il ne faut pas offrir L'holocauste sacré de tes premières roses Aux souffles violents qui pourraient les flétrir ? Mes baisers sont légers comme ces éphémères Qui caressent le soir les grands lacs transparents, Et ceux de ton amant creuseront leurs ornières Comme des chariots ou des socs déchirants ; Ils passeront sur toi comme un lourd attelage De chevaux et de boeufs aux sabots sans pitié... Hippolyte, ô ma soeur ! tourne donc ton visage, 37 Toi, mon âme et mon coeur, mon tout et ma moitié, Tourne vers moi tes yeux pleins d'azur et d'étoiles ! Pour un de ces regards charmants, baume divin, Des plaisirs plus obscurs je lèverai les voiles, Et je t'endormirai dans un rêve sans fin ! " Mais Hippolyte alors, levant sa jeune tête : - " Je ne suis point ingrate et ne me repens pas, Ma Delphine, je souffre et je suis inquiète, Comme après un nocturne et terrible repas. Je sens fondre sur moi de lourdes épouvantes Et de noirs bataillons de fantômes épars, Qui veulent me conduire en des routes mouvantes Qu'un horizon sanglant ferme de toutes parts. Avons-nous donc commis une action étrange ? Explique, si tu peux, mon trouble et mon effroi : Je frissonne de peur quand tu me dis : " Mon ange ! " Et cependant je sens ma bouche aller vers toi. Ne me regarde pas ainsi, toi, ma pensée ! Toi que j'aime à jamais, ma soeur d'élection, Quand même tu serais une embûche dressée Et le commencement de ma perdition ! " Delphine secouant sa crinière tragique, Et comme trépignant sur le trépied de fer, L'oeil fatal, répondit d'une voix despotique : - " Qui donc devant l'amour ose parler d'enfer ? Maudit soit à jamais le rêveur inutile Qui voulut le premier, dans sa stupidité, S'éprenant d'un problème insoluble et stérile, Aux choses de l'amour mêler l'honnêteté ! Celui qui veut unir dans un accord mystique L'ombre avec la chaleur, la nuit avec le jour, Ne chauffera jamais son corps paralytique A ce rouge soleil que l'on nomme l'amour ! Va, si tu veux, chercher un fiancé stupide ; Cours offrir un coeur vierge à ses cruels baisers ; Et, pleine de remords et d'horreur, et livide, Tu me rapporteras tes seins stigmatisés... 38 On ne peut ici-bas contenter qu'un seul maître ! " Mais l'enfant, épanchant une immense douleur, Cria soudain : - " Je sens s'élargir dans mon être Un abîme béant ; cet abîme est mon cœur ! Brûlant comme un volcan, profond comme le vide ! Rien ne rassasiera ce monstre gémissant Et ne rafraîchira la soif de l'Euménide Qui, la torche à la main, le brûle jusqu'au sang. Que nos rideaux fermés nous séparent du monde, Et que la lassitude amène le repos ! Je veux m'anéantir dans ta gorge profonde, Et trouver sur ton sein la fraîcheur des tombeaux ! " - Descendez, descendez, lamentables victimes, Descendez le chemin de l'enfer éternel ! Plongez au plus profond du gouffre, où tous les crimes, Flagellés par un vent qui ne vient pas du ciel, Bouillonnent pêle-mêle avec un bruit d'orage. Ombres folles, courez au but de vos désirs ; Jamais vous ne pourrez assouvir votre rage, Et votre châtiment naîtra de vos plaisirs. Jamais un rayon frais n'éclaira vos cavernes ; Par les fentes des murs des miasmes fiévreux Filtrent en s'enflammant ainsi que des lanternes Et pénètrent vos corps de leurs parfums affreux. L'âpre stérilité de votre jouissance Altère votre soif et roidit votre peau, Et le vent furibond de la concupiscence Fait claquer votre chair ainsi qu'un vieux drapeau. Loin des peuples vivants, errantes, condamnées, A travers les déserts courez comme les loups ; Faites votre destin, âmes désordonnées, Et fuyez l'infini que vous portez en vous !42 42 Op. cit., p. 505. 39