Susana Cabete (Universidade de Paris)

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Susana Cabete (Universidade de Paris)
VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010
A representação do Outro nas narrativas de viagem de Ricardo
Guimarães: percursos, imagens e locais de culto.
Esta comunicação constitui uma viagem à vida e obra de um ilustre
desconhecido, Ricardo Guimarães, folhetinista brilhante que alcançou uma enorme
projecção nos periódicos oitocentistas, mas cuja obra – maioritariamente constituída por
narrativas de viagem –, permanece praticamente desconhecida do grande público,
actualmente.
A comunicação estrutura-se em três momentos distintos: primeiramente, tecerei
algumas reflexões sobre a importância e a actualidade dos estudos imagológicos;
seguidamente, farei uma breve incursão à vida e obra desta figura oitocentista
praticamente desconhecida e, num terceiro momento, que eu denominei «Para uma
cartografia do olhar», sobrevoaremos as narrativas de viagem do escritor, de modo a
detectarmos o processo de construção, reprodução e difusão de imagens do estrangeiro,
com especial incidência para os países da Europa.
1. Da actualidade dos estudos imagológicos
O estudo das imagens e da representação do estrangeiro tem conhecido um forte
incremento, sobretudo nas últimas décadas, no âmbito da Literatura Comparada,
permitindo a emergência de uma importante área de reflexão designada por Imagologia.
Actualmente, para além das ligações interdisciplinares que mantém com a
Antropologia, a Sociologia ou a História, a Imagologia encontra-se intimamente ligada
a outros domínios emergentes dos Estudos Literários e da Literatura Comparada, 1
1
Cf. Jean-Marc Moura, «L’imagologie littéraire: tendences actuelles», in Perspectives Comparatistes – Études réunies par Jean
Bessière et Daniel-Henri Pageaux, Paris, Honoré Champion, 1999, p. 188-191.
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designadamente a moderna área dos Cultural Studies, de tradição anglo-saxónica, sem
esquecer os Estudos de Recepção e Tradução 2 ou, ainda, a Mitocrítica. 3
Contudo, apesar dos pontos de contacto evidentes, as fronteiras entre os Estudos
Culturais e a Literatura Comparada devem ser cuidadosamente delimitadas, sob pena de
cairmos numa espécie de melting pot cultural, não perdendo de vista que a Literatura
Comparada, vocacionada para a relação entre a estética e a cultura na sua dimensão
estrangeira, tem uma metodologia específica, que lhe confere um estatuto de disciplina
autónoma.
Os estudos imagológicos, pela importância que atribuem à mitologia do espaço
estrangeiro e ao imaginário como modelo simbólico, lidando com questões de análise
predominantemente culturalista do texto, implicam um estudo paralelo ao nível da
história das ideias ou das mentalidades, dado que a representação de um espaço procede
de toda uma ideologia que lhe está subjacente num determinado período históricoliterário. Essa ideologia traduz-se na valorização de determinados aspectos em
detrimento de outros, resultando na cristalização de um conjunto de ideias préconcebidas e estereótipos sobre determinada realidade ou, não raras vezes, na
(des)construção de todo um imaginário que a precedeu e influenciou.
Convocando os contributos teóricos de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri
Pageaux, importa salientar que a imagem literária é, antes de mais, a “representação de
uma realidade cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou grupo que a elaboram
(ou que a partilham ou que a propagam) revelam e traduzem o espaço ideológico no
2
Cf. Yves Chevrel, «La Littérature en traduction constitue-t-elle un champ littéraire ?», Le Champ littéraire – Études réunies et
présentées par P. Citti et M.Detrie, Paris, Vrin, 1992, p.152.
3
Cf. Pierre Brunel, «Littérature comparée: les théories de l’imaginaire et l’exégèse des mythes littéraires», Introduction aux
méthodologies de l’Imaginaire, sous la direction de Joël Thomas, Paris, Ellipses, 1998, pp. 225-234.
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qual se situam” 4 , devendo ser estudada como fazendo parte de um conjunto vasto e
complexo: o imaginário.
Seguindo a leitura hermenêutica de Paul Ricoeur relativa aos discursos
enquadráveis no imaginário social 5 , Jean-Marc Moura propôs, por sua vez, uma
distinção tipológica das imagens do estrangeiro, distinguindo as imagens ideológicas e
as imagens utópicas – pólos extremados entre os quais se situam e oscilam as imagens
sobre o estrangeiro, passíveis de serem encontradas em obras literárias ou
paraliterárias. 6
A narrativa de viagem constitui, como é sabido, o corpus de trabalho primacial
da imagologia, 7 dado que a literatura de viagens possibilita, por excelência, o encontro
com o Outro, que se manifesta na sua singularidade, potenciando, deste modo, a
experiência fundamental da alteridade e tornando fecunda a sua representação.
Devido à deambulação contínua que instaura, a viagem é profícua em
experiências múltiplas, consubstanciadas no contacto com povos, ambientes e locais
diversificados, geradores de um «estranhamento» mais ou menos profundo no sujeito
que olha o Outro, à luz de um esquema mental e de uma matriz cultural que lhe são
próprios. A assimilação da novidade radica, muitas vezes, no acto de comparar e de
classificar e cujo registo se sustenta na ligação íntima que estabelece com um discurso
identitário que, concomitantemente, vai tomando corpo e forma no tecido narrativo.
Escritas sob o paradigma autobiográfico e enunciadas, regra geral, por um
narrador autodiegético que narra a história da sua própria experiência enquanto
protagonista da viagem, estas narrativas colocam em cena espaços e locais variados,
levando o viajante a problematizar o Outro, equacionando-o e reescrevendo-o, através
4
Cf. Álvaro Manuel Machado/Daniel-Henri Pageaux, Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura, 2.ª ed. revista e aumentada,
Lisboa, Editorial Presença, 2001, p. 51.
5
Cf. Paul Ricoeur, Du texte à l’action – Essais d’herméneutique II, Paris, Seuil, 1986.
6
Cf. Jean-Marc Moura, L’Europe Littéraire et l’Ailleurs, Paris, PUF, 1998, p. 53.
7
Como observa Yves Chevrel, trata-se de « documents primaires […] moyen privilégié de rencontre avec l’étranger.», La
Littérature Comparée, Paris, PUF, coll. “Que sais-Je?”, 1989, p. 25.
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de um processo de revisitação e actualização de memórias literárias e culturais,
ancoradas num imaginário colectivo de que ele é produto e, simultaneamente, produtor.
2. Ricardo Guimarães: o escritor e o viajante
Ricardo Guimarães era o símbolo da mocidade.
Diderot, se o visse pela primeira vez abraçá-lo-ia
chamando-lhe: Mr La Jeunesse. Beiços vermelhos, dentes
de jaspe, o frouxel da adolescência nas faces rosadas,
olhos negros como os de um árabe, mas com a animação
peninsular, cabelos finos, flutuantes e anelados. Nos
gestos, nos ademanes, na voz, na fecunda palavra, na
exuberante alegria, no apetite devorador, no espírito
endiabrado, era o ideal do estudante e ao mesmo tempo a
aurora de um grande talento.
Bulhão Pato, Sob os ciprestes: vida intima de
homens illustres, 1877.
Antes de percorrermos a obra de viagens de Ricardo Guimarães, para
observarmos a dinâmica e os mecanismos da representação do Outro e da autorepresentação, será oportuno perscrutar o universo em que este se moveu, de modo a
conhecermos melhor a personalidade que se esconde por detrás do escritor e do viajante.
Incompreensivelmente esquecido pela crítica literária, o escritor figura na
história da literatura como uma das personalidades da segunda geração romântica
portuguesa, geração que se encontra estudada, sendo um dos vultos mais representativos
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da chamada «Escola do Folhetim», 8 fenómeno que foi determinante para a formação do
Romantismo em Portugal e cuja real dimensão não foi, ainda, suficientemente
explorada.
Mais conhecido literariamente por visconde de Benalcanfor, 9 Ricardo Augusto
Pereira Guimarães distinguiu-se no panorama literário português oitocentista como
folhetinista de grande talento. Nascido no Porto, em 1830, vindo a falecer em Lisboa em
1889, foi contemporâneo de escritores bem conhecidos no meio literário da época,
nomeadamente, Camilo Castelo Branco, António Pedro Lopes de Mendonça, Júlio
César Machado, Bulhão Pato, entre outros de menor nomeada, com os quais viria a
travar conhecimento e a desenvolver laços de amizade, dentro e fora do circuito das
letras. 10
O escritor conquistou com muita facilidade o seu espaço no seio da elite
literária e culta do tempo, sendo presença assídua no Grémio e nos salões literários,
nomeadamente, o salão de Maria Amália Vaz de Carvalho, espécie de Mme de Staël
portuguesa (depois, evidentemente, da Marquesa de Alorna), e que era frequentado por
Camilo, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, entre outros escritores de
grande projecção.
De personalidade multifacetada, Ricardo Guimarães evidenciou, desde cedo,
interesses muito diversificados: começou por se formar em Direito na Universidade de
Coimbra e veio a abraçar três vertentes que são absolutamente indissociáveis: a de
escritor, crítico literário e a de viajante, não esquecendo, igualmente, a sua faceta de
deputado, professor e tradutor, uma vez que traduziu para língua portuguesa o célebre
8
Cf. Álvaro Manuel Machado, Les Romantismes au Portugal. Modeles étrangers et orientations nationales, Paris, Fondation
Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1986, pp. 236-251 e 288-299.
9
Ricardo Guimarães é agraciado com o título de visconde por Decreto de 14-VII-1870 e Carta Régia de 6-V-1871 (D. Luis). Cf.
Nobreza de Portugal e do Brasil, [dir., coord. e compilação de Afonso Eduardo Martins Züquete], vol. II, Lisboa, Editorial
Encicopédia, Ldª, 1960, p. 416.
10
Sobre a vida e obra de Ricardo Guimarães, cf. Susana Margarida Carvalheiro Cabete, Ricardo Guimarães – o escritor e o
viajante: imagens do estrangeiro e pressupostos teóricos, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2003 (292 pgs.).
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D. Quixote de Cervantes, em 1877, auxiliado pelo escritor e poeta espanhol D. Luís de
Breton y Vedra, na altura residente em Lisboa, desempenhando o cargo de Cônsul Geral
do México. 11
O seu trajecto de vida ligá-lo-ia de modo particular a Espanha, país onde exerceu
cargos de grande destaque, à semelhança do que sucedeu em Portugal. O escritor foi
secretário do Instituto Industrial de Lisboa, secretário da Procuradoria Geral da
Fazenda, ajudante honorário do Procurador Geral da Coroa, Inspector de Instrução
Pública (entre 1880 e 1881). Foi, igualmente, membro-professor da Academia de
Jurisprudência e Legislação de Espanha, sócio da Academia Real de História, da
Academia de Cervantes e da Sociedade de Antropologia (as três de Madrid), sócio da
Sociedade de Economia Política de Paris, vindo a caber-lhe a honra de proferir o Elogio
Histórico de Dom Fernando II, então presidente da Academia Real das Ciências de
Lisboa, recitado na sessão pública de 19 de Dezembro de 1886.
Desde muito novo que o escritor nutriu especial interesse pela vida política,
revelando-se um defensor do liberalismo, vindo mais tarde a ser deputado em sucessivas
legislaturas e a legar-nos inúmeros folhetins onde reflectiu sobre a vida política nacional
e também sobre a da vizinha Espanha. 12
Homem cosmopolita e de gostos diversificados, interessou-se, inclusivamente,
pela agronomia e pela economia, mas foi na literatura que Ricardo Guimarães encontrou
a sua verdadeira vocação. O jornalismo exerceu, desde sempre, um grande fascínio no
escritor: ainda jovem, estreou-se n’A Estrela do Norte e n’O Nacional do Porto,
fundado por Evaristo Basto, publicando artigos muito bem acolhidos pelo público,
confirmando o aparecimento de um talento nascente, facto que foi corroborado por
11
Cf. Inocêncio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez, tomo XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906, p. 273.
O escritor filiou-se no Partido Histórico e foi eleito deputado por Damão (na legislatura de 1860 a 1864), por Cinfães (1865) e, em
1868, foi nomeado Secretário-Geral do Governo de Macau, cargo que não chegou a exercer por motivos de saúde.
12
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destacadas personalidades da época, designadamente Pinheiro Chagas, que salientou
que o escritor era «em Portugal um dos primeiros» 13 na arte do folhetim.
Efectivamente, a escrita revelou-se para ele uma espécie de obsessão, o que
estava, de resto, em conformidade com o espírito da época. A publicação de artigos da
sua autoria conheceria grande expansão e o escritor veria o seu nome ligado,
inclusivamente, à fundação de jornais, nomeadamente O Portuense (1853), periódico
que fundou e dirigiu juntamente com Camilo Castelo Branco.
Os folhetins do escritor apresentavam algumas particularidades que o
popularizaram bastante: uma prosa simples e ligeira, um estilo vivo, espontâneo e
gracioso, bem ao gosto do público da época, cliente ávido desta modalidade de escrita.
Apelidado por Bulhão Pato de «folhetim vivo e faiscante»,14 Ricardo Guimarães
era, essencialmente, um escritor de impressões, abordando os temas do quotidiano e
episódios da sua contemporaneidade, num estilo ligeiro e harmonioso, que se tornou
característica do género.
Mais tarde, o escritor estabeleceu residência em Lisboa e viria a colaborar
noutros periódicos, nomeadamente, n’O Arauto, entre 1854 e 1855 e, posteriormente, na
Civilização, na Revolução de Setembro e na Revista Contemporânea. O escritor
colaboraria, igualmente, no periódico O Tejo, fundado por Júlio César Machado, em
1867, cuja particularidade era ser bilingue, publicando-se em francês e português.
Cerca de 1871, Ricardo Guimarães abandonou toda a actividade política para se
dedicar em exclusivo às letras, não sem antes nos legar Narrativas e episódios da vida
politica e parlamentar (1863), obra que espelha todo o ideário político do escritor,
tendo a edição de mil exemplares esgotado rapidamente.
13
Apud Visconde de Benalcanfôr, De Lisboa ao Cairo/Scenas de Viagem, Porto, Liv. Internacional de Ernesto Chardron, 1876, p.
X.
14
Bulhão Pato, Memórias. Quadrinhos de outras épocas, ed. e notas de Vítor Wladimiro Ferreira, Tomo III, Lisboa, Perspectivas &
Realidades, 1986, p. 139.
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Nesta fase de paragem na vida política, Ricardo Guimarães colaborou no
Comércio do Porto, escrevendo curiosas correspondências a partir de Lisboa,
intituladas, precisamente, «Cartas Lisbonenses», onde recupera momentos da vida da
capital, da sua cultura material, da mentalidade e da sensibilidade dos lisboetas. Estes
folhetins são particularmente interessantes, na medida em que Ricardo Guimarães
estabelece como que a fisiologia da capital, permitindo-nos «mergulhar» na sociedade
lisboeta da época, apreender as suas vicissitudes, gostos e anseios, constituindo, por
conseguinte, um valioso documento que não deverá ser descurado, para uma
compreensão mais aprofundada da sociedade portuguesa oitocentista.
Nos seus textos – sendo difícil, sem um trabalho de equipa, estabelecer a sua
bibliografia, dispersa em inúmeros jornais e revistas para os quais colaborou, ao longo
de quarenta anos de folhetins –, encontramos toda a vida de Lisboa, das suas gentes e,
sobretudo, de uma certa roda culta que frequentava os botequins e as casas de pasto, que
nutria simpatia pelos actores e pelos teatros, mas também de uma Lisboa seduzida pelas
novidades literárias de além-fronteiras, pela dança, pela música e pelos espectáculos,
estando esses acontecimentos que animaram e agitaram a sociedade, esquecidos nos
rodapés dos periódicos da época.
Ricardo Guimarães consagrar-se-ia, igualmente, à crítica literária, ainda que de
modo incipiente e pouco sistemático, tecendo considerações sobre diversos escritores
nacionais do seu tempo, sendo alguns desses folhetins coligidos para o volume
Phantasias e Escriptores Contemporâneos, datado de 1874.
Nas suas apreciações críticas, o escritor acusa, igualmente, a leitura dos grandes
autores franceses, nomeadamente Chateaubriand, Lamartine, Victor Hugo e Flaubert, a
quem ele apelidou de «principes da litteratura», tendo assumido, igualmente, uma
profunda admiração por Sainte-Beuve, que ele considerou «o grande mestre da
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critica». 15 Alguns folhetins são particularmente interessantes, na medida em que
permitem detectar o seu posicionamento face à produção literária da época e a avaliação
que este faz de modelos literários do Romantismo quer nacionais, quer estrangeiros.
Em suma, para concluir esta apresentação preliminar, Ricardo Guimarães foi
uma figura que se destacou no panorama jornalístico da época, convertendo-se num
nome de referência na arte do folhetim – que foi, afinal, a modalidade de escrita de
eleição da imprensa periódica oitocentista. Ele integra, na verdade, uma geração que, de
certo modo, abraçou a tendência do século XIX para a escrita de viagem, legando-nos
inúmeras narrativas de que faremos eco já de seguida.
3. Ricardo Guimarães – para uma cartografia do olhar :
Ricardo Guimarães deve ser um admiravel
narrador de viagens. Se elle ainda com um
assumpto uniforme e desbotado como é a vida
lisbonense, sabe apresental-o com inexcedivel
magia, […] imagine-se que riqueza de tons elle
encontrará, quando passarem por diante dos seus
olhos as cidades andaluzas, maravilhosas como um
sonho oriental, as passagens phantasticas do
Rheno, os velhos burgos allemães […] os palacios
de Vienna a mirarem-se no Danubio, e as
maravilhas da industria moderna, que são um
15
Visconde de Benalcanfôr, «Leves traços ácerca da Poesia», Leituras do Verão, Typographia de A.J. da Silva, 1883, p. 86.
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capitulo inedito, e o mais prodigioso de todos
acrescentado, ás Mil e uma noites.
Pinheiro Chagas, De Lisboa ao Cairo/
Scenas de Viagem, 1876.
«Viajar» e «comparar» são duas vertentes que surgem profundamente
interligadas na obra de Ricardo Guimarães, escritor que evidenciou uma enorme
abertura ao espaço estrangeiro e um espírito profundamente cosmopolita, documentados
nas diversas narrativas de viagem que os periódicos da época acolheram sob a forma de
folhetins.
No capítulo intitulado «Do Tejo ao Guadiana» da sua obra de memórias Leituras
do Verão (1883), o escritor justificou o seu pendor viajeiro, salientando que: «De vez
em quando, o escritor tem que levantar a tenda de beduíno e transportar-se a mais
afastadas regiões.», 16 denotando uma insatisfação e sensação de incompletude
tipicamente românticas.
Para responder a esse apelo interior, mas também a um gosto de época, o escritor
viajou abundantemente, revelando a preocupação, bem ao gosto romântico, de registar
as impressões colhidas nos diversos locais que visitou. Segundo refere, as suas viagens
e as narrativas que delas dão conta resultavam, sobretudo, do intuito de «[…] furtar
algumas horas ao tedio devorador da vida quotidiana […].» 17 mas também como forma
de (cor) responder às solicitações desse «[…] monstro querido dos escriptores, mas não
menos ávido chamado “leitor”.». 18
16
Visconde de Benalcanfor, Leituras do Verão, ed. cit., p. 89
Ricardo Guimarães, «Ao Leitor», in Impressões de Viagem: Cadiz, Gibraltar, Pariz e Londres, Porto, Viúva Moré – Editora,
1869, p. XII.
18
Visconde de Benalcanfor, Na Itália, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1876, p. 250.
17
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Efectivamente, para além de um desejo notório de romper com o quotidiano
convencional, limitado e limitativo, acrescia a pressão do público, amante voraz deste
tipo de escrita, condicionando, deste modo, a produção do escritor.
Na sequência das inúmeras deslocações que empreendeu, Ricardo Guimarães
legar-nos-ia Impressões de Viagem – Cadiz, Gibraltar, Pariz e Londres (1869) e Vienna
e a Exposição (1873), narrativas que obtiveram um enorme sucesso junto do público,
razão pela qual foram coligidas para volume, depois de publicadas inicialmente em
folhetim.
O escritor efectuou, pelo menos, duas visitas a Londres, o que lhe permitiu ter
um conhecimento directo da realidade britânica, constatar os avanços técnicos e o
desenvolvimento dos caminhos de ferro, motivos pelos quais atribuiu à Inglaterra o
epíteto de «paiz dos prodigios da civilisação». 19
A primeira dessas visitas ocorreu no final da década de 60, altura em que
Ricardo Guimarães viajou para Paris para assistir à Exposição Universal de 1867; a
segunda deslocação ocorria seis anos depois, tendo o escritor descansado alguns dias na
capital britânica, para retomar viagem rumo a Viena de Áustria, a fim de assistir à
Exposição Universal de 1873.
Para Ricardo Guimarães, a Inglaterra impunha-se, essencialmente, pelo seu
espírito positivo e empreendedor, sendo o mais importante foco comercial e industrial
de toda a Europa, distinguindo-se pela vanguarda da sua indústria, dos seus
equipamentos técnicos e engenhos mecânicos. Do ponto de vista político, configurava
para ele a nação modelo, devido ao espírito democrático e aos ideais de liberdade que
ali imperavam.
A «romagem» à Exposição Universal de Viena de Áustria está, por sua vez, na
base do seu relato intitulado Vienna e a Exposição (1873), cujas impressões assumiram,
19
Ricardo Guimarães, Impressões de Viagem: Cadiz, Gibraltar, Pariz e Londres, ed. cit., p. 264.
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inicialmente, a forma de correspondência epistolar, sendo posteriormente coligidas para
volume. Trata-se de uma narrativa particularmente interessante, na medida em que nos
patenteia um vasto conjunto de imagens de diversos países europeus. Na verdade e ao
contrário do que o título deixa antever, o universo imagético de Ricardo Guimarães não
se circunscreve à Áustria, proporcionando-nos um verdadeiro tour por diferentes países
do Norte da Europa, designadamente, a Alemanha e a Bélgica.
Para o escritor, a modernidade dos países do Norte estava bem patente na
fisionomia das suas cidades principais, destacando-se a cidade de Viena pela
grandiosidade dos seus jardins, palácios e monumentos. A Bélgica, por sua vez, aliava o
sentido da utilidade e o pragmatismo germânicos ao sentido estético da França. A
cidade de Bruxelas, com as suas lojas e hotéis luxuosos, afigura-se ao escritor como
uma espécie de microcosmos de Paris. Refere o viajante que:
A differença está somente em que tudo isto, - bosques, cafés, boulevards,
cocottes e janotas - cabe á vontade no espaço que vae da praça da Concordia até
ao arco da Estrella. Bruxellas, para pintarmos bem ao vivo a sua pequenez
animada e graciosa, é uma espécie de Paris de algibeira, em formato 32. 20
A Alemanha, por sua vez, constituía para o escritor um país marcante do ponto
de vista intelectual e literário, enquanto pátria de Schiller e de Goethe, considerados
expoentes máximos do romantismo alemão. O escritor teve a oportunidade de visitar as
cidades de Nuremberga e de Munique, que registaram o seu agrado devido à sua
arquitectura e magníficos museus, tendo o escritor enaltecido, sobretudo, espírito
pragmático, positivo e empreendedor do povo alemão.
20
Visconde de Benalcanfor, Vienna e a Exposição, Lisboa, Typographia Progresso, 1873, p. 53.
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Quanto à Áustria, reunindo a alegria francesa e a serenidade alemã, impunha-se
pela índole artística e musical do seu povo, ao qual Portugal se rendia, importando a
valsa, dança que fazia as delícias dos bailes lisboetas e portuenses da época romântica,
sem esquecer as magníficas orquestras, consideradas por Ricardo Guimarães as
melhores de toda a Europa. Segundo refere o escritor: «[…] Vienna é bem mais artistica
do que Pariz, e mesmo mais hospitaleira para os pobres dilettanti, que a cada instante, e
por 1 ou 2 florins, podem ouvir a melhor musica do mundo tocada pelos primeiros
artistas. 21
Neste verdadeiro périplo que Ricardo Guimarães empreendeu pela Europa, a
Itália seria, naturalmente, ponto de referência obrigatório. O escritor consagraria a este
país um volume intitulado, precisamente, Na Itália (1876), que surge na sequência da
viagem que o escritor efectuou ao Próximo-Oriente, depois de ter sido nomeado CônsulGeral do Governo em Macau, cargo que não chegou a desempenhar devido a um
problema de saúde, tendo retrocedido a meio da viagem.
Ao regressar a Portugal, o escritor passou por Itália, tendo a sua estadia
compreendido passagens por diversas cidades italianas, designadamente, Roma, Pisa,
Nápoles e Génova. A sua visita ao país fora precedida por sólidas leituras sobre a
cultura italiana, o que revela uma preocupação clara do escritor em inscrever-se numa
tradição literária, pela convocação dos textos fundadores relativos ao espaço visitado, e
que contribuíram para criar todo um imaginário acerca do país.
Ricardo Guimarães considerou a Itália o mais valioso repositório existente em
termos culturais, arquitectónicos e artísticos de toda a Europa e, embora tenha ficado
absolutamente fascinado com o Vaticano, ressalvou o facto de Roma não ter
correspondido inicialmente às suas expectativas, desmistificando o que em torno da
cidade circulava:
21
Idem, p. 143.
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Roma impressionou-nos bem desagradavelmente, confessamol-o, nas primeiras
quatro horas em que a percorremos. Predios ou insignificantes ou aleijados,
alguns d’elles verdadeiros invalidos de pedra e cal, outros gravidos da ruina
imminente; […] Que contraste completo entre a Roma contemporanea e a
tradicional da republica e dos imperadores, principalmente para o espirito do
visitante salteado de reminiscencias classicas! Aonde contavamos vêr
projectarem-se vias triumphaes, surgem-nos travessas sinuosas! […]. 22
Face à realidade estrangeira, o discurso valorativo de Ricardo Guimarães é,
frequentemente, entrecortado com apreciações bastante severas quando reconhece a
existência de determinadas fragilidades, não se verificando no seu discurso uma atitude
de submissão perante o Outro.
Neste processo de formação de imagens, a «equação pessoal» do sujeito não é
suficiente, como justamente constataram Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri
Pageaux. Com efeito, o imaginário pessoal do viajante encontra-se ancorado num
imaginário colectivo decorrente de leituras efectuadas que aguardam, por sua vez, uma
legitimação e actualização. A herança livresca surge, a cada passo, como a grande
intermediária e como bitola de aferição para o que se vai conhecendo e reconhecendo.
Este facto foi, de resto, corroborado por Claudio Guillén que, em Multiples Moradas
(1998), salientou que a viagem: “[…] no es pretexto de saber, o de entendimiento, sino
de escritura e reescritura», 23 conferindo importância decisiva à memória literária
colectiva no processo de formação, actualização e difusão de imagens.
22
Visconde de Benalcanfor, Na Itália, ed. cit., pp. 94-98
Claudio Guillén, «Tristes tópicos: imágenes nacionales y escritura literaria», Multiples Moradas. Ensayo de Literatura
Comparada, Barcelona, Tusquets Editores, 1998, pp. 336-337.
23
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De todos os países visitados, a França configurou para Ricardo Guimarães a
nação suprema, por aliar os prodígios da ciência ao seu génio artístico (componente esta
que faltava aos ingleses), impondo a sua supremacia intelectual e artística a toda a
Europa. Esta hegemonia intelectual e cultural francesa era, de resto, partilhada por todos
os outros escritores da sua geração, que desenvolveram uma nítida francofilia,
convertendo Paris num verdadeiro local de culto, sedutor e inebriante.
A admiração pela França leva Ricardo Guimarães a admitir que ela é,
inquestionavelmente, em pleno século XIX, o «cérebro da Europa», o centro da cultura,
da ciência e do pensamento. Diz-nos o viajante que Paris é:
Astro-rei, imitam-te nos costumes, e nas modas, traduzem-te na litteratura e na
sciencia, e allumiam-se aos clarões, do teu genio, as mais polidas e adiantadas
capitaes, cortejo humilde de satellites, que giram submissos á volta da tua orbita
luminosa. 24
Se, do ponto de vista ideológico, a Inglaterra é a pátria de eleição de Ricardo
Guimarães, a França representa para ele a sedução por excelência. Tendo viajado para a
capital francesa no final da década de 60, na companhia de Júlio César Machado e de
Tomás de Carvalho, para assistirem à Exposição Universal (1867), o escritor rende-se
aos seus encantos, confessando que «ver Pariz é adoral-a.». 25
Paris constituía para ele uma espécie de cenário mítico, cujo imaginário havia
sido alimentado por várias leituras efectuadas desde a mais tenra juventude. Este facto
é, de resto, reconhecido pelo próprio escritor, que não esconde a sua excitação quando
visita a cidade pela primeira vez. Confessa-nos que:
24
25
Ricardo Guimarães, Impressões de Viagem: Cadiz, Gibraltar, Pariz e Londres, ed. cit., p. 276.
Idem, p. 247.
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Parece que nos vamos lançar nos braços de uma esposa desconhecida, mas que
amamos de ha muito pelas declarações feitas, pelos protestos jurados, pelas
caricias promettidas. Homens d’imaginação ou epicuristas desenfreados, todos
entrevêem Pariz, desde os verdes annos, nas nevoas de sonhos phantasticos. A
poesia e a proza, o ideal e a sensualidade dividem entre si a soberania de Pariz.
[…] As mais palpitantes creações da litteratura ácerca dos encantos de Pariz
lidas na quadra juvenil, e engrandecidas pelo prestigio seductor da mocidade,
empallidecem, quando sentimos nos ouvidos o zumbido da colmeia enorme,
toda tecida de febre e de delirio. 26
Na tradição de outros escritores, Ricardo Guimarães partilhou e desenvolveu um
enorme fascínio pela Cidade Luz, convertendo o seu relato de viagem num verdadeiro
tributo à capital francesa, redundando numa óbvia mitificação da cidade. A profusão de
lojas e de hotéis luxuosos, os seus magníficos boulevards e esplêndidos jardins, a
agitação frenética dos seus cafés e teatros, exercem no escritor uma profunda sedução,
tornando a experiência parisiense inolvidável. Paris afigura-se aos seus olhos como uma
metrópole extremamente cosmopolita, moderna e desenvolvida, perante a qual se
curvam as grandes capitais da Europa, rendendo-se aos seus hábitos, costumes e modas.
De um dandismo e refinamento conhecidos, Ricardo Guimarães rende-se ao luxo
e à variedade de artigos de vestuário e ornamentação, considerando a França o «paiz da
elegancia». 27 A certo momento da narrativa, o escritor refere absolutamente extasiado:
26
27
Idem, p. 153.
Idem, p. 145.
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Quanto a phantasia pode imaginar-se em vestuarios, em modas, em
ornamentações, em moveis […] em christaes de Saint Louis e de Baccarat, em
porcellanas de Sêvres, em faïences de Deck e Collinot, em luvas Jouvin, em
camisas, […] em ourivesaria […] e em perfumes, encontra-se nos boulevards e
nas ruas que os crusam. […] A mais transparente e fina lingerie desdobra-se
diante de vós […], lenços […] relogios e cadeias, agua de Colonia, pomada
hungara, se daes aos bigodes a curva de um crescente mussulmano; chapeus da
rua Richelieu, bengalas e badines, cold-cream e brillantine, se pertenceis á
frivola familia dos gandins; fato e calçado, tudo se agglomera n’um raio de trinta
passos, em depositos luxuosos e inexhauriveis. 28
Ali se deparou com os mais célebres costureiros, cabeleireiros e sapateiros do
mundo inteiro, tendo constatado a dinâmica das livrarias e da própria Universidade, a
testemunhar a supremacia francesa não apenas no sector da moda, mas sobretudo a nível
cultural e intelectual. O escritor tece, mesmo, rasgados elogios ao sistema de ensino, aos
inúmeros espaços promotores do estudo e da leitura e, sobretudo, à emancipação
feminina visível em diversos quadrantes da sociedade, marcos, para ele, de uma
sociedade inquestionavelmente avançada.
O escritor concede, de resto, especial atenção à representação do vulto feminino
que surge muito vincado nas suas narrativas. A imagem que nos fornece da mulher
francesa em termos físicos, resulta num verdadeiro exercício de análise comparada, cujo
fascínio partilha com a própria França:
28
Idem, pp.187-188.
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Sente-se o halito de Pariz no ar gracioso das mulheres, que sem terem a belleza
fascinadora das hespanholas, o alhar profundo, e a expressão ardente das
andaluzas, são suavemente louras, brancas, e esbeltas. O andar da mulher
franceza é gentil, imprime-lhe tão airosa distincção, que nos esquecemos de lhe
contemplar a phisionomia, para nos extasiarmos perante a graça dos seus
movimentos. 29
Nas diversas narrativas de viagem de Ricardo Guimarães, constatamos que os
países do Norte da Europa assumem, claramente, o estatuto de «civilizações
superiores», evidenciando um nítido avanço em termos intelectuais, artísticos e técnicos
face às nações do Sul.
Neste contexto, a França representa para o escritor o exemplo paradigmático da
nação modelo, recuperando-se um estereótipo característico da literatura da época.
Contudo, apesar de valorizar a realidade estrangeira de matriz francesa, o escritor não se
coíbe em denunciar determinados flagelos que condena veementemente, nomeadamente
a libertinagem e as cocottes que, à época, grassavam em Paris. 30
A postura crítica de Ricardo Guimarães não se demite quando está perante o
Outro, muito embora este possua sobre ele um ascendente e um estatuto modelar
inegáveis. Nessa medida, não nos podemos reportar a uma relação de submissão perante
o Outro, mas a uma relação que se quer sem hierarquização.
Curiosamente, apesar de Ricardo Guimarães registar, com alguma consternação,
o atraso civilizacional de Portugal e de Espanha face aos seus congéneres europeus, os
países da Península Ibérica não assumem o estatuto de nações «incivilizadas» na sua
29
Idem, p. 145.
«Nos gabinetes recamados d’espelhos e douraduras doudejam os petits crevés, Alcibiades degenerados de Aspasias faceis, cujo
amor se cota no mercado, e gyra na circulação como quaesquer acções de companhias ou notas de banco pagas á vista. É um
espectaculo desolador no meio de tantas maravilhas o ver a horda esfaimada das marcheuses, que se alimentam do delirio dos
sentidos, a precipitar-se ás seis da tarde sobre a vasta zona das passages e cafés, á cata d’um jantar gratuito.», Idem, p. 159.
30
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obra, da mesma forma que não se sente no seu discurso um complexo de inferioridade.
A vertente cosmopolita do escritor é, na verdade, acompanhada de um Iberismo bem
vincado, no quadro do qual evidencia uma atitude profundamente patriótica,
valorizando o seu país natal, a sua cultura e o seu povo, numa atitude de reabilitação da
identidade portuguesa, tantas vezes desprezada, mal conhecida ou mesmo ignorada.
Esse patriotismo emerge em todo o seu fulgor quando ao atravessar a Bélgica, o
escritor retoma a tradicional denúncia do esquecimento e indiferença votados a
Portugal, aproveitando para lastimar o esquecimento votado às belas paisagens
nacionais por parte, inclusivamente, dos nossos escritores:
Quantas vezes não tenho perguntado a mim mesmo o motivo pelo qual uma
naturesa severa como a do Douro, tão cheia de asperezas, de barrancos e de
abysmos […] não inspirou ainda um so homem, que de tal paizagem tirasse o
mesmo effeito que Shakespeare soube tirar dos lagos, das cavernas, e das
brenhas da Escossia? […] Emquanto á sua face romantica, não conhecemos rio
até agora mais aviltado de prosa do que o Douro, em cuja força e violencia de
corrente se vê fielmente retractada a valentia proverbial dos habitantes das suas
margens. 31
Constatamos, pois, que o relato de viagem ao estrangeiro ao permitir a
descoberta e o contacto com a alteridade, proporciona, como que paradoxalmente, um
profundo questionamento acerca do país de origem, traduzindo-se numa aferição da
identidade nacional pela experiência feita no espaço do Outro.
31
Idem, pp. 47-48.
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Especialmente férteis em hetero e auto-imagens, as narrativas de Ricardo
Guimarães primam, essencialmente, pela linguagem simples e pelo tom coloquial,
preconizados por Garrett nas suas Viagens na Minha Terra (1845). Nos seus relatos, o
escritor procura registar as impressões colhidas sem cair em deslumbramentos
excessivos, sendo o tecido discursivo, frequentemente, entrecortado por considerações
sobre história, política, literatura, bem como apreciações de ordem estética que, por sua
vez, abarcam os domínios da pintura, da escultura e da arquitectura.
Em suma, e neste sentido, a viagem em Ricardo Guimarães é, antes de mais,
uma viagem «plural», já que ela não se reduz a um trajecto físico que é descrito, ela
contempla outras «viagens» empreendidas pela História, pela Literatura e pela Arte em
geral. Torna-se, por isso, inquestionável, de que a compreensão daquilo que foi o século
XIX português, bem como as relações que Portugal estabeleceu com outros países,
passa por um estudo rigoroso deste tipo de narrativas, (o que implica mergulharmos no
periodismo oitocentista e mais concretamente no universo do folhetim), pelas
implicações culturais decorrentes do processo de formação de imagens do estrangeiro,
que nos permitem apreender as linhas de força de uma época, do ponto de vista dos seus
paradigmas culturais e sua inevitável projecção para a actualidade.
Para concluir e, simultaneamente, retomar aquele que foi o nosso ponto de
partida, cumpre-nos reiterar a pertinência do estudo da representação do Outro
estrangeiro no âmbito da Literatura Comparada, determinante que é para podermos
dilucidar as dinâmicas identitárias da representação e da auto-representação.
Nota: Nas citações foi reproduzido o português tipicamente oitocentista.
Observação: A versão desta Comunicação para efeitos de publicação nas Actas é mais
reduzida e será enviada, oportunamente, à organização do Colóquio.
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